sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O Negócio da Morte


Tenho andado a fugir de falar em mortos desde que apareceram por aqui uns caixões.Bem bonitos por sinal. Creio, porque os americanos não brincam em serviço, que sejam feitos de material biodegradável, excepto, claro está, que se destinem a ficar no mausoléu da família.
Vem agora Laranjalima "desenterrar" outra vez os caixões para especular sobre o peso da alma e vai daí, aguilhoado pela insistência, dou continuidade ao tema deixando ao vosso critério avaliar da seriedade com que o faço.
Naquela época a miudagem da escola arrepiava-se toda quando ouvia contar que fulano ou sicrano já tinha mandado fazer um caixão à sua medida e que colocado em pé ao lado do guarda-vestidos aguardava o momento de ser usado.A gente não conseguia compreender como é que podia haver alguém que conseguia dormir com um objecto daqueles no quarto e levámos muito tempo para perceber que, afinal, essas pessoas só conseguiam dormir descansadas depois de deixarem tudo arrumado, principalmente a sua entrada no outro mundo. Era por isso natural ouvir a nossa avó dizer que já tinha a roupinha que devia levar vestida na ocasião,arrumadinha na última gaveta da cómoda do seu quarto. E o lençol e os sapatinhos também.
Só muito mais tarde, já com penugem nos queixos, consegui avaliar que apesar de tudo havia uma evolução positiva.
Tempos houveram, afinal, em que os caixões tinham dois buracos no sítio dos olhos do morto para ele poder ver a luz do dia, ou que alguns até tinham uma saída falsa para poderem ir dar uma volta.
Ao perceber-me que isto era uma evolução e não uma involução desatei a acelerar. Foi nessa altura que li um livro de ficção que tinha alguma coisa a ver com este assunto.Tratava-se de uma sociedade racional, isto é, vivia á base da razão. Entre muitos "disparates", havia um procedimento, que há luz do conhecimento actual era tão premonitório como foram "As 20.000 léguas submarinas" do querido e inesquecível Júlio. Em todos os bairros de todas as cidades havia instalações próprias para onde as pessoas se dirigiam muito natural e calmamente, quando entendiam que já não tinham mais utilidade para a sociedade. Faziam uma festa de despedida com a família e lá iam com um sorriso nos lábios entregar-se nas mãos dos técnicos devidamente qualificados que os ajudavam a ir desta para melhor.
Dou-me agora conta de ter usado "ir desta para melhor", dito popular revelador de que as coisas por cá já andavam tão mal que mesmo desconhecendo o que se passava do outro lado, entendiam que não podia ser pior. Também me estou a dar conta que se é verdade que os índios já encaravam a morte com a naturalidade que é mostrada no anúncio e algumas sociedades africanas fazem há séculos três dias de festa com o morto sentado num tronco assistindo ao farrobodó, o que deve haver é uma involução, já que os americanos, com a mania de servirem copos e salgadinhos nos velórios, não fazem mais do que contribuir para a racionalização da coisa mais natural do mundo – a morte! Tão natural que faz parte da própria vida – sem uma não haveria a outra.Tal e qual como comer.
Assim, é tão espontâneo o florescimento do comércio de “comes e bebes” como o de caixões.Bem, acontece, que as funerárias apercebendo-se que cada vez há mais pessoas a pedirem para ser assadas, ou cremadas, ou lá o que é, já introduziram as urnas de todos os géneros, tanto para se biodegradarem dentro de água como no chão do quintal debaixo da nespereira. Afinal não fazem mais do que estar atentas ao evoluir das tendências do mercado.
Em Itália, por exemplo, as mesmas gajas boas que promovem os Ferraris, estirando-se languidamente sobre o capot daquelas super máquinas, acumulam outra actividade projectando as suas belas e contornadas formas no comércio dos caixões.
Tudo muito natural, tudo prá frentex!
Por mim tudo bem. A minha mulher já me disse:
- Afinal ainda não disseste se querias ser cremado ou enterrado.
- Caramba – digo eu – quero lá saber o que vocês fazem com a matéria que de qualquer modo vai ser apenas pó. Pisem-me todo e cortem-me às postas para dar mais arrumação.
Afinal se alguma coisa sobrasse só podiam ser aqueles 21 gramas de espírito, que em Marte pesariam muito menos e no espaço etéreo não teriam peso nenhum.
A.M.

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