quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A gordura da informação

Quando se descrevem determinadas situações e se omite o nome das pessoas os atingidos amofinam e os desconfiados sentem-se provocados.
De qualquer modo, se a intenção é criticar uma situação, emitir uma opinião, defender um ponto de vista, não é necessário revelar identidades. Neste caso, a crítica é dirigida a um determinado tipo de jornalismo e os personagens são meros acessórios.
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Quando hoje de manhã cheguei ao café da esquina, no respeitoso cumprimento do ritual de reformado, ainda não tinha chegado o jornal com que casei há dois anos em segundas núpcias.
- Empresta-me aí uma coisa qualquer, para ir lendo – falei para o Jorge.
Trouxe-me a bica e um jornal, que por acaso (será por acaso?) é o de maior tiragem neste nosso País, tão menosprezado, tão amesquinhado, mas também, tão amado. Sustida, mesmo a tempo, na pontinha da língua, estacou:
- Tira-me daqui esta merda, que já estou a ficar com comichões.
Deixa-me cá ver se isto por dentro é igual à casca – pensei, entretanto. As cascas que a gente vê nos tablóides costumam reflectir melhor a qualidade do miolo do que, por exemplo, os melões.
Alguns minutos de leitura diagonal foram suficientes. O estilo mantém-se: Títulos garrafais, melodramáticos, catastróficos e definitivos. O corpo da notícia é o alfinete que esvazia o balão!
Exemplo:
Lê-se “Raptada e violada por criminoso”. Imaginamos o quê?
Eu pensei que tinha sido raptada num sinal vermelho, durante o sono, pela calada da noite, à boca do metropolitano, à saída do elevador; sob ameaça de pistola, spray adormecente, navalha de ponta e mola; amordaçada, encapuçada, carregada dentro dum saco e enfiada na mala de um Mercedes. O problema se calhar é meu que vejo muitos filmes “amaricanos”.
Afinal a história era bastante diferente.
Lida toda a notícia encontrada no miolo, ficamos a saber que o criminoso era amigo da família da vítima. Pese embora o seu notável cadastro, era também íntimo de algumas personalidades da nossa “hight society”. Foi em liberdade condicional que ele se tornou amigo do marido da “raptada”, e quando esta se divorciou, ele ficou lá em casa a fazer segurança, acabando ambos por se envolverem intimamente.
O sequestro e o rapto mais não são do que episódios do quotidiano em que estala o desentendimento e alguma violência entre casais desavindos.
Parece que neste caso, como a vítima é personalidade conhecida, a história vale bom dinheiro. Condimentada e guarnecida a preceito é um pitéu para qualquer jornal do crime, seja qual for o título ou a tiragem.
- Oh, Jorge, traz-me mais uma bica que já estou a ficar nervoso!
A.M. 11/FEV/2006

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