domingo, 17 de agosto de 2008

O Toureiro



Veio o cavalo e deu-lhe uma patada!
Veio o lobo, ferrou-lhe uma dentada!
Veio o boi, arrumou-lhe uma marrada!
Ele contudo, manso como um lago,
Apenas lhe lançou um olhar vago…


João de Deus


Um amigo, já falecido, sempre que me encontrava, pedia-me:- Conta lá aquela do Zé Cassiano.Tinha-lhe caído no goto. Em memória da nossa amizade e do tempo em que convivemos em Angola, aqui vai a história.Nos anos 40 praticava-se bastante uma modalidade de festa brava, que creio ter caído em desuso - eram as vacadas. Tinha muito mais atractivos para uma criança como eu do que a seriedade e monotonia das verdadeiras touradas. Durante as festas de Santo António, padroeiro da terra, realizavam-se sempre dois ou três espectáculos deste tipo, e pela mão do meu avô habituei-me a apreciar os personagens que evoluíam na arena. Nunca faltava o anão, que para fugir às marradas se escondia sob o estribo das trincheiras; o saltador à vara, que quando o animal investia, pulava sobre ele com admirável elasticidade; ou ainda o homem-estátua que, completamente vestido de branco, permanecia de pé, imóvel, sobre uma barrica colocada no meio da praça.
Mas as vacadas também tinham uma parte reservada ao toureio a pé, o momento mais sério, que eu aguardava sempre com alguma ansiedade. Entre trincheiras, o meu ídolo, Zé Cassiano, aguardava a sua hora. De traje de luzes vermelho e ouro, a montera a preceito, bem descida sobre a testa, toureava na segunda praça mais antiga do nosso País, e tinha obtido grande sucesso em anos anteriores.
Naquele dia fatídico, quando saiu o animal que lhe coube em sortes, negro, cornalão, soprando fumaça pelas ventas e marrando furiosamente nas tábuas, ficou siderado. O resfolegar da besta, impregnou o ar da praça de um cheiro fedorento.
Então, o toureiro exímio, que eu admirava, com o nome e o corpo bem destacados nos cartazes afixados em todas as ruas de vilas e aldeias em redor, ficava-se assim?A muito custo, depois de alguns minutos que me pareceram anos, o seu peão de brega conseguiu convencê-lo a saltar para a arena, mas fê-lo pelo lado oposto àquele em que se encontrava o inimigo. Vagarosamente, sempre acompanhado (ou seria empurrado?) pelo seu peão, avançou com os braços levantados, segurando o capote estendido à sua frente, até muito perto do animal que entretido a cheirar as tábuas junto ao curro, nem deu pela sua presença. Zé Cassiano ainda arranjou ânimo para gritar:- Eh! Eh! Eh touro lindo!O animal virou lentamente a cabeça na sua direcção, mas nesse momento o meu herói já tinha largado o capote e à pernas para que vos quero, fugia direito ao outro lado da arena. O cornúpeto, esse ficou parado na sua querença natural, sem lhe ligar a mínima importância. Quando chegou à trincheira procurou saltar, mas o pé não atinou com o estribo, bateu com o peito nas tábuas e caiu para trás, de costas no chão, levantando uma nuvem de poeira.A praça inteira, já em silêncio, ouviu o grito lancinante:- Ai puta que me mataste!Nos anos que se seguiram ainda se realizaram algumas vacadas, mas o seu nome deixou de figurar no cartaz..
António Mata, Algueirão-Mem Martins (Sintra)
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Imagem: Touro na arena, acrílico s/ tela de Paula Navarro

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