domingo, 17 de agosto de 2008

"O VOADOR"


A revista periódica "O VOADOR" é ainda hoje órgão de comunicação do Clube dos Sargentos da Força Aérea Portuguesa.
Durante alguns anos redigi os seus editoriais, alguns dos quais por continuarem a focar problemas actuais, aqui deixo colados sem preocupação de ordem cronógica.

Arte ou ciência?

Regemo-nos por um sistema político de partidos e se é certo que eles não se constituíram para estarem de acordo entre si acerca do que é necessário fazer para governar o País, não é menos verdade que a ausência de acordos, regras de conduta, ou mesmo de um código deontológico origina prejuízos que, mais tarde ou mais cedo todos teremos de pagar.
Não interessam os compromissos assumidos, as despesas feitas com estudos, projectos, expropriações e mesmo em trabalhos já iniciados. Os novos responsáveis, assim que assumem funções, encomendam logo uma auditoria, revogam decisões dos seus antecessores e em seguida, se necessário, deitam abaixo o que foi feito e mandam construir mais ao lado.
Ainda as eleições vão no adro e já se projecta inverter o sistema de eliminação dos resíduos sólidos, o aeroporto da Ota volta a ser contestado, o Euro 2004 está mais para lá (Espanha) do que para cá, e talvez algumas mentes cogitem em suspender as obras do Alqueva.
Creio que foi no “Mosquito” ou então no “Mundo de “Aventuras”, que há cerca de 60 anos li a história da vida de Thomas Alva Edison. Muito tempo passou, mas não mais esqueci uma curta passagem, reveladora do carácter desse físico eminente. Depois de ter falhado mais uma das centenas de experiências efectuadas, na procura de uma liga ideal para o filamento da lâmpada de incandescência, o seu assistente, desanimado, observou:
- Mestre, tanto trabalho para nada.
Ao que Edison retorquiu:
- Tudo o que fizemos até agora fica registado, e mesmo que não consigamos atingir o nosso objectivo, quem vier depois de nós não terá de repetir as experiências falhadas.

Esta atitude, que é absolutamente vulgar no campo científico por ser parte integrante do próprio método, tornou-se, ao longo dos anos, importante em todas as áreas do conhecimento. Registar todos os dados e informar correctamente quem nos substitui numa determinada função - quer seja na vida militar, numa fábrica ou mesmo na nossa própria casa - é fundamental para evitar bloqueios ou derrapagens na persecução dos objectivos.
Se a política, sendo uma arte, também pretende ser uma ciência, os políticos devem abandonar a atitude do bota-a baixo e dar mais atenção ao método. O País só beneficiará com isso.
Abril de 2002

O Sofisma

Quando medeiam alguns anos entre duas afirmações de sentido oposto, a pessoa que as proferiu pode sempre argumentar que entretanto evoluiu e se adaptou a uma nova realidade, ou então que as circunstâncias mudaram, o contexto é outro, e ainda pode, simplesmente, fazer um desmentido.
Para atenuar a má impressão que isso possa causar, tem ainda a possibilidade de acusar os adversários de serem monocór-


dicos, pouco imaginativos ou mesmo de terem engolido uma cassete. Dá muito bom resultado, pois desloca-se o ponto de focagem para outro lado.
Mas quando, entre duas informações contraditórias e incoerentes medeia apenas o espaço entre dois almoços, torna-se mais difícil arranjar uma justificação. Neste caso a única desculpa possível tem origem na carta dos vinhos.
Conheci um criador de gado para abate que lamuriava por lhe pagarem pouco pelas reses, mas barafustava violentamente pelo preço que lhe pediam pelos bifes. Também toda a gente se lembra do “sketch” da saudosa Ivone Silva em que se focava a enorme contradição entre a Olívia patroa e a Olívia costureira.
Calígula, por exemplo, era um verdadeiro sofista na sua crueldade: declarava que puniria os cônsules se eles celebrassem o dia de festa instituído em memória da vitória de Áccio, e que os puniria se não o celebrassem.
Vem tudo isto a propósito da campanha para as autárquicas que alguns candidatos já estão fazendo. Não serão tão cruéis como Calígula, mas são certamente tão sofistas como Protágoras. Sem terem o cuidado de ler os discursos anteriores, defendem o que criticaram e criticam o que defenderam; conforme a hora e o local são pró ou anti regionalistas; condenam promessas dos opositores que eles próprios mantém nos seus programas eleitorais.
Dezembro de 2007

Da literacia

De vez em quando uma determinada palavra irrompe no nosso quotidiano. Chega até nós através de todos os meios de informação; surge em debates televisivos, nos noticiários e nos artigos da imprensa. Umas vezes é uma nova palavra, outras, um velho vocábulo enterrado nas profundezas dos dicionários do meu avô. Como todas as modas, depois de muito usada vai parar ao caixote do lixo.
Literacia é, neste momento a palavra eleita. Mal acabei de a escrever, logo o corrector ortográfico do meu PC a sublinhou de vermelho, mas eu zás, ordenei que fosse adicionada. Como é fácil introduzir palavras nos dicionários!

Não é uma palavra nova, contudo não consta do Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António Morais da Silva, editado segundo o acordo ortográfico de 1945. Mas constam outras, como literatejar, literatice, ou literateiro que tal como aquela derivam de literato. Mas o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, exaltado por uns, e vilipendiado por outros, não contem estas, mas já introduz aquela, por ser contemporânea, julgo eu.
O significado que ali se encontra para este termo é: capacidade de ler e escrever. E logo a seguir exemplifica através de uma frase: “o índice de literacia dos portugueses é muito baixo”.
Acontece que não basta ler e escrever para melhorar o índice em causa, pois não é verdade que há muito menos analfabetos do que iliteratos?
Sendo assim, talvez fosse melhor atribuir-lhe o seguinte significado:
- Conhecimento do vocabulário suficiente que permita a uma pessoa compreender o que lê e escrever o que pensa.

Dezembro de 2001

O Latoeiro

As férias são uma oportunidade para afrouxar a tensão do quotidiano dando-nos a possibilidade de, nos novos espaços que se criam, dar mais atenção ao que nos rodeia.
Para além da observação das belezas da paisagem e de mais atenção dedicada à família resta-nos ainda algum tempo para ler as notícias do dia e paciência para ver o telejornal até ao fim. Claro que nos devemos munir com uma grande dose de indulgente pragmatismo, pois as coisas que se passam neste país nem sempre são muito agradáveis.
Como reagir aos problemas de injustiça - Criados por decisões ou noutros casos por falta delas - com que constantemente somos confrontados?
O imposto sobre as mais valias estaria em vigor; não haveria pessoas expulsas da terra onde vivem por serem de etnia cigana; não haveria pessoas esventradas nas largadas de toiros; o Artº 31º da LDNFA teria sido revisto há muitos anos. Que dizer de um orçamento rectificativo de 150 milhões de contos, quando não há a coragem de cobrar dos “tubarões” aquilo que devem ao fisco? E o Sr. presidente detido no seu domicílio enquanto o violador é detido numa prisão comum e executado pelos outros presos? E um outro presidente separatista/autonomista, que chama nomes a toda a gente, incluindo ao mais alto magistrado da nação, comportando-se com se estivesse num couto privado, e apenas provoca uma indulgente risota nacional?
Contou-me o meu avô, quando eu era muito pequeno, que um certo juiz colocado na comarca de Tomar, corria o ano de 1948, pediu ao oficial de diligências que lhe alugasse uma casa para viver. Encontrou um primeiro andar numa rua perto do centro da cidade, e o juiz chegados os tarecos, ali se instalou. Todavia, passados alguns dias, queixou-se que a casa ficava por cima de um latoeiro, e não podia descansar com tanto barulho. O funcionário, comprometido, tratou de procurar outra casa, num sítio mais calmo, o que levou algum tempo. Quando por fim o conseguiu e foi informar o juiz, este respondeu:
- Agora não quero porque já me habituei ao barulho.
Também eu não quero outro país para morar. Habituei-me a este. E assim vou conseguindo encarar os acontecimentos sem perder o sono, que para mim é coisa sagrada.

Setembro de 2001




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