Rememorar os episódios da nossa juventude é a propensão natural das pessoas da nossa idade, principalmente quando reunidos a propósito de qualquer evento a memória se desata e imagens que julgávamos arquivadas para sempre se projectam com enorme nitidez. Creio que é um acto salutar desde que não se passe da saudade para o saudosismo, que não são, propriamente, uma e a mesma coisa.
Contudo, nem sempre é agradável recordar factos do passado. Há quem não goste e reaja com muito mau humor quando se revelam estórias, mesmo que sobre elas tenha decorrido mais de meio século. Omiti-las quando são importantes pode falsear a verdade histórica.
Todos os colegas que passaram pela Base Aérea nº 1 em Sintra em meados dos anos 50 recordam um comandante de companhia que em determinada altura elegeu como mascote um pastor alemão, tendo-lhe construído um “palácio” numa área adjacente ao seu gabinete. Chamava-se Fernando Santos Ferreira e era primo de Santos Costa, ministro de Salazar.
Naquela época todos achámos muita graça quando ele aplicou dez dias de prisão ao canídeo por ter entrado inopinadamente na secretaria e ter enlameado com as patas os documentos que estavam sobre as secretárias. Talvez alguns ainda se recordem que a versão oficial dos problemas na Índia a partir de Dadrá e Nagar Aveli, nos foram transmitidos por esse capitão num “briefing" que teve lugar numa velha garagem de camionetas, naquela altura a funcionar como cinema. Salazar, que defendia o “sacrifício total” na defesa do império ultramarino, promoveu a herói o guarda fronteiriço Aniceto do Rosário, que Santos Ferreira não tratou muito bem, tendo apresentado uma versão diferente sobre o seu comportamento perante o inimigo. Naquela altura muitos de nós louvámos a sua coragem, embora sabendo da sua ligação familiar com o ministro.
O que desconhecíamos nessa altura e muitos ainda hoje não saberão é que Santos Ferreira, o nosso comandante de companhia, estivera pouco tempo antes envolvido num dos mais vergonhosos actos do nosso colonialismo, que ficou conhecido como a “Guerra do Batepá”Em Fevereiro de 1953, sendo governador de S. Tomé e Príncipe Carlos Sousa Gorgulho, na sequência de alguma agitação provocada por algumas medidas contidas no Plano de Fomento e mal recebidas pelos roceiros por fazerem perigar a mão de obra escrava que utilizavam, deu-se um massacre que vitimou cerca de um milhar de trabalhadores nativos. Chacinados e deitados ao mar segundo ordem directa de Gorgulho: - “Deita essa merda ao mar para evitar mais chatices”.
O Tenente Santos Ferreira, homem do Governador, tinha sido chamado para o cargo de comandante da polícia em substituição do Capitão Salgueiro Rego, que se recusara a pactuar com o plano do governador, sendo posteriormente preso e embarcado para o Continente.Eduardo Alexandre Viegas Ferreira de Almeida no livro “Quarenta anos de aviação” e publicado por sua mulher já depois da sua morte, relata-nos estes acontecimentos, atribuindo a Santos Costa o nome que foi dado a esta guerra por, quando assistia aos interrogatórios, recomendar:- “Bate, pá! Bate com força que o gajo acaba por confessar. Bate, pá!”.Transcrevo uma passagem do seu relato:“A pequena cadeia, mesmo no centro da cidade, estava superlotada. Os gritos dos presos ouviam-se em toda a cidade. Pela madrugada, uma camioneta carregava os mortos na cadeia e ia deitá-los ao mar, onde os tubarões os faziam desaparecer. Numa noite de excepcional calor, numa cela onde caberiam, apertados, uns quinze presos, morrem sufocados cerca de uns cem!”
Também José Alvarenga filho do Coronel Clodomir Alvarenga, no seu sítio http://www.alvarenga.net/pai.htmlww.alvarenga.net/pai.html nos relata este episódio, visto que seu pai, ainda em 1953, como capitão, foi enviado para S.Tomé para substituir Santos Ferreira, logo após terminado o massacre. Os três longos anos que se seguiram de investigações e julgamentos revelaram que poucos esforços foram feitos para apurar a verdade, tendo o Governo Português mandado encerrar as investigações em 1956. Clodomir Alvarenga terá mesmo afirmado:- “Aquilo tratou-se de uma tentativa de extermínio e era impossível que Salazar, sempre tão bem informado, o desconhecesse”.Sobre este episódio colonialista ocorrido em pleno Estado Novo existe hoje um acervo inesgotável de informação, que inclui depoimentos de pessoas que directa ou indirectamente o viveram. Não deixa de ser relevante mencionar a tendência, talvez não inocente, de alguns autores se lhe referirem como Guerra do Batepá, como se aqueles acontecimentos tivessem ocorrido durante a luta armada e organizada.Pormenores escandalosos relacionados com a exploração da mão-de-obra escrava, feita pelo Governador Gorgulho para dar cumprimento a um plano de promoção pessoal, ao mesmo tempo que, para agradar aos roceiros, bloqueava algumas medidas liberalizantes emanadas do Governo Central, foram, efectivamente, a espoleta daqueles trágicos acontecimentos.O 25 de Abril de 1974 permitiu que fossem desvendados alguns actos odiosos da nossa história que, quer queiramos quer não, fazem parte do nosso passado comum. A verdade pode doer, mas deve ser revelada e assumida para que os alicerces do nosso futuro não fiquem minados à partida..
Imagens do monumento alusivo à escravatura em Zanzibar, Tanzânia
Sem comentários:
Enviar um comentário