sábado, 30 de agosto de 2008
O Bufo Real
Ave nocturna que dá guinchos tristes. Semelhante à coruja e ao mocho é todavia maior. Em Portugal pode encontrar-se o bufo real no Parque Natural do Douro Internacional, de que aqui apresentamos este magnífico exemplar.
Por incrível que pareça um bufo muito grande não se chama bufão.
Bufão é um bobo da corte, que se apresenta como andarilho esfarrapado acompanhado de um pequeno cão. Sei isto porque quando aprendi cartomancia com o Florbela e a Maia fiquei a saber que o bufão está na carta zero do tarô.
E que significado tem isso? - Perguntais vocês agora:
- Mestre, que significado tem isso, afinal?
Significa inexperiência e busca de sabedoria.
(Elementos extraídos da Biblioteca Mundial cujo acesso está à distância de um pequeno clique)
sexta-feira, 29 de agosto de 2008
A blasfémia
Isto é, se dois ou três ateus se entretiverem em amena cavaqueira a blasfémia não entrou. Também é muito difícil que ela surja entre praticantes da mesma religião. O problema coloca-se quando invadimos as religiosidades alheias menosprezando as suas crenças e as suas divindades.
Como ateu devo ter blasfemado “à séria” em muitas circunstâncias da vida. Tenho contudo o cuidado de arrear as velas assim que me apercebo do incómodo do interlocutor.
Recordo que deixei de fazer relatos das minhas conversas com o Gualdim Pais embora as tenha psicografadas num caderno que comprei para o efeito. Não são publicáveis porque só dão para fazer um livro de 99 páginas. Logo que tenha oportunidade de revisitar o Castelo do Almourol vou tentar mais uma entrevista com o Gualdim para atingir as 150. Parei com essas revelações porque me apercebi que estava a incomodar um amigo que desbravava o Allan Kardec e citava frequentemente o Xico Xavier.
Os extraterrestres, por exemplo, mais alguém me ouviu falar neles? Alguma vez eu ia negar que eles “andem” por aí sobrevoando cidades e vilas para vigiar o nosso comportamento?
Se houve uma onda de indignação do mundo muçulmano por causa das caricaturas de Maomé é absolutamente normal que o mundo católico seja invadido por uma onda de repulsão a propósito do “sapo crucificado”.
Se o Papa vem exigir que a escultura seja retirada da exposição em que se encontra,
podemos concluir que os comentários dos líderes religiosos muçulmanos não eram assim tão despropositados ou tão fundamentalistas.
Do mesmo modo, gostava de ouvir agora uma opinião sobre a ameaça à liberdade de imprensa que muitos comentadores admitiram naquela altura.
Quando se trata de elaborar regras de conduta e as respectivas leis que as enquadrem e defendam é obrigatório que sejam universais,
Ou então isto é tudo uma grande cegada, é o salve-se quem puder, é o “cada um ao seu e todos ao mesmo”.
A.M.
P.S. - "À séria" é uma locução (suponho que seja isso) muito em voga entre gente fina da nossa sociedade. Não gosto dela, "prontos", não gosto. Todavia tenho que me treinar não vá a Lili Caneças convidar-me para uma vernissage e apanhar-me desactualizado.
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
domingo, 24 de agosto de 2008
Tapar o sol com a peneira
A última vez que referi este facto foi a propósito de um caso português, que passados mais de 36 anos ainda está no segredo dos deuses, porque existem familiares que se podem melindrar. São assuntos importantes que deviam estar já acessíveis para consulta de investigadores de modo a que se possa fazer a história correcta desse período.
Quando tanto se fala no direito à informação e liberdade de expressão por causa de umas garatujas, muito me admira que ninguém tenha uma palavra a dizer sobre o modo como são classificados certos documentos e ao tempo de retiro a que os sujeitam.
Tendo, portanto, uma posição bastante liberal no que respeita a este assunto não posso deixar passar em claro a notícia de que nos EUA a administração bushiana mandou reclassificar milhares de documentos.
Isto é, documentos que deixaram de ser confidenciais e que há muito tempo estavam à disposição de toda a gente para consulta, voltaram a ser confidenciais.
Ou seja, cerca de 55.000 páginas de documentos depositados nos Arquivos Nacionais e na Biblioteca Presidencial, alguns com mais de 50 anos e já largamente consultados e difundidos através de livros e revistas dos mais variados autores, voltam para a arca dos classificados. Top-secret.
Como assim?
Como é possível, escondendo agora os originais, desvalorizar ou anular tudo o que com base neles já foi revelado?
Esta administração "amaricana" ainda não fez uma única desclassificação de documentos desde que está no poleiro. A última foi feita em 1995 pela administração americana chefiada por Bill Clinton e muito material disponibilizado nessa altura está agora de volta ao baú.
Ou seja os amaricanos não confiam nos americanos!
Os investigadores, que como o historiador Matthew Aid, tenham em seu poder cópias de documentos que consultaram legalmente, ficam agora sujeitos a prisão por terem, de um momento para o outro e enquanto dormiam a sesta adquirido o estatuto de espiões em cuja posse se encontram documentos altamente secretos.
Talvez, até a pena de morte impenda sobre as suas cabeças!
Que triste sina.
A.M.
PS. Isto é tudo mentira. É apenas o relato mirabolante de um pesadelo que tive a noite passada quando fervilhava a 40 graus por mor de um ataque de paludismo.
sábado, 23 de agosto de 2008
O Director Adjunto
Ainda não tinha recuperado totalmente deste episódio quando soube que ia chegar a Lisboa um dos 13 palestinianos da Igreja da Natividade. Nem queria acreditar. Queria lá saber que o Ministro dos Negócios Estrangeiros dissesse que o homem não era nenhum cadastrado e nem sequer havia indícios de que tivesse cometido qualquer crime.
Era ou não verdade que numa linda e calma noite de luar, sem que nada o fizesse prever, a igreja fora invadida por aqueles 13 energúmenos que durante semanas mantiveram cativas centenas de pessoas que àquela hora participavam devotamente num acto litúrgico? Enquanto cá fora a vida decorria rotineiramente, lá dentro praticavam-se as maiores sevícias. Aquelas bestas chegaram mesmo ao ponto de partir um crucifixo com o intuito de fazer umas talas para um braço partido e urinaram no cálice sagrado, pasme-se.
Agora, Portugal inteiro ia ter que ficar de atalaia. Um desses monstros aprestava-se para provocar o caos num país tão sossegadinho como o nosso.
Annan Tanjeh pode estar sentado ao nosso lado no café ou no cinema, passar por nós na rua, pode até ser o condutor do autocarro 17, ou o técnico que vem reparar o telefone, ou quem vem contar a electricidade... Quando chegar o Inverno, muito cuidado com os carrinhos das castanhas assadas - podem estar armadilhados.
O Sr. Director Adjunto não dorme desde então. Corre para casa logo que se liberta dos compromissos diários, e tranca-se. Chapeou a porta da rua com aço e mandou montar uma daquelas fechaduras alemãs que custam uma dinheirama. Antes de se deitar, revista toda a casa, não se esquecendo de espreitar debaixo da cama e mesmo dentro dos armários da cozinha. Quem sabe se o vândalo não é anão? Dorme aos solavancos ao ritmo de pesadelos medonhos e nem o polícia que a Administração Interna destacou para a sua porta lhe traz alguma tranquilidade. Quem sabe ele não é o Alan Tanjeh?
Pobre Sr. Director Adjunto!
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
Francisco Lázaro
Qualquer opinião deve ter uma boa base.
Proponho esta polemicazinha para animar as hostes:
Chovem comentários de toda a ordem sobre os Jogos Olímpicos:
Quem ganha mais medalhas, quem devia ganhar algumas e não ganha nada, quem é apoiado e quem não é, quem diz que é melhor ficar na caminha e quem ache que se deve sofrer até cair para o lado.
Não vou comentar nada nem ninguém, sem primeiro dizer isto:
Estes jogos não são olímpicos.
Será que Lázaro, que morreu por desidratação na maratona de Estocolmo em 1912 tinha apoios do estado ou de alguma fábrica de sapatilhas?
Ele era carpinteiro, não tinha treinador e a sua performance devia-se à corrida diária que fazia de casa para o trabalho.
Em meados dos anos cinquenta também fiz umas corridas e até cheguei a participar num campeonato de iniciados em representação do Benfica que me pagava o dinheiro dos transportes para os treinos no velho Campo Grande, perante a apresentação dos respectivos bilhetes. Tomás Paquete ainda corria, Matos Fernandes ainda saltava barreiras e o treinador era Fernando Ferreira.
Nesse tempo os atletas eram na sua maioria amadores e não era raro haver alguns desclassificados nos Jogos Olímpicos por se descobrir que tinham recebido “prendas” de entidades comerciais ou industriais.
Era inconcebível haver profissionais a disputar provas nos Jogos desse tempo.
O vil metal corrompeu os ideais olímpicos. Não se concebe que um atleta profissional, como Ronaldinho, Messi ou a maioria dos jogadores da NBA tenham apoios estatais para participar nos Jogos Olímpicos.
Transformem as Olimpíadas num campeonato do mundo que integre todas as modalidades, porque o espírito que devia presidir a estes Jogos já foi adulterado há muito tempo:
Posto isto, todos os comentários feitos sobre tudo o que se tem passado no que respeita ao nosso comportamento na China, passará a ter outro sentido.
A.M.
domingo, 17 de agosto de 2008
"O VOADOR"
A revista periódica "O VOADOR" é ainda hoje órgão de comunicação do Clube dos Sargentos da Força Aérea Portuguesa.
Durante alguns anos redigi os seus editoriais, alguns dos quais por continuarem a focar problemas actuais, aqui deixo colados sem preocupação de ordem cronógica.
Arte ou ciência?
Não interessam os compromissos assumidos, as despesas feitas com estudos, projectos, expropriações e mesmo em trabalhos já iniciados. Os novos responsáveis, assim que assumem funções, encomendam logo uma auditoria, revogam decisões dos seus antecessores e em seguida, se necessário, deitam abaixo o que foi feito e mandam construir mais ao lado.
Ainda as eleições vão no adro e já se projecta inverter o sistema de eliminação dos resíduos sólidos, o aeroporto da Ota volta a ser contestado, o Euro 2004 está mais para lá (Espanha) do que para cá, e talvez algumas mentes cogitem em suspender as obras do Alqueva.
Creio que foi no “Mosquito” ou então no “Mundo de “Aventuras”, que há cerca de 60 anos li a história da vida de Thomas Alva Edison. Muito tempo passou, mas não mais esqueci uma curta passagem, reveladora do carácter desse físico eminente. Depois de ter falhado mais uma das centenas de experiências efectuadas, na procura de uma liga ideal para o filamento da lâmpada de incandescência, o seu assistente, desanimado, observou:
- Mestre, tanto trabalho para nada.
Ao que Edison retorquiu:
- Tudo o que fizemos até agora fica registado, e mesmo que não consigamos atingir o nosso objectivo, quem vier depois de nós não terá de repetir as experiências falhadas.
Esta atitude, que é absolutamente vulgar no campo científico por ser parte integrante do próprio método, tornou-se, ao longo dos anos, importante em todas as áreas do conhecimento. Registar todos os dados e informar correctamente quem nos substitui numa determinada função - quer seja na vida militar, numa fábrica ou mesmo na nossa própria casa - é fundamental para evitar bloqueios ou derrapagens na persecução dos objectivos.
Se a política, sendo uma arte, também pretende ser uma ciência, os políticos devem abandonar a atitude do bota-a baixo e dar mais atenção ao método. O País só beneficiará com isso.
O Sofisma
Quando medeiam alguns anos entre duas afirmações de sentido oposto, a pessoa que as proferiu pode sempre argumentar que entretanto evoluiu e se adaptou a uma nova realidade, ou então que as circunstâncias mudaram, o contexto é outro, e ainda pode, simplesmente, fazer um desmentido.
Para atenuar a má impressão que isso possa causar, tem ainda a possibilidade de acusar os adversários de serem monocór-
Mas quando, entre duas informações contraditórias e incoerentes medeia apenas o espaço entre dois almoços, torna-se mais difícil arranjar uma justificação. Neste caso a única desculpa possível tem origem na carta dos vinhos.
Conheci um criador de gado para abate que lamuriava por lhe pagarem pouco pelas reses, mas barafustava violentamente pelo preço que lhe pediam pelos bifes. Também toda a gente se lembra do “sketch” da saudosa Ivone Silva em que se focava a enorme contradição entre a Olívia patroa e a Olívia costureira.
Calígula, por exemplo, era um verdadeiro sofista na sua crueldade: declarava que puniria os cônsules se eles celebrassem o dia de festa instituído em memória da vitória de Áccio, e que os puniria se não o celebrassem.
Vem tudo isto a propósito da campanha para as autárquicas que alguns candidatos já estão fazendo. Não serão tão cruéis como Calígula, mas são certamente tão sofistas como Protágoras. Sem terem o cuidado de ler os discursos anteriores, defendem o que criticaram e criticam o que defenderam; conforme a hora e o local são pró ou anti regionalistas; condenam promessas dos opositores que eles próprios mantém nos seus programas eleitorais.
De vez em quando uma determinada palavra irrompe no nosso quotidiano. Chega até nós através de todos os meios de informação; surge em debates televisivos, nos noticiários e nos artigos da imprensa. Umas vezes é uma nova palavra, outras, um velho vocábulo enterrado nas profundezas dos dicionários do meu avô. Como todas as modas, depois de muito usada vai parar ao caixote do lixo.
Literacia é, neste momento a palavra eleita. Mal acabei de a escrever, logo o corrector ortográfico do meu PC a sublinhou de vermelho, mas eu zás, ordenei que fosse adicionada. Como é fácil introduzir palavras nos dicionários!
Não é uma palavra nova, contudo não consta do Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António Morais da Silva, editado segundo o acordo ortográfico de 1945. Mas constam outras, como literatejar, literatice, ou literateiro que tal como aquela derivam de literato. Mas o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, exaltado por uns, e vilipendiado por outros, não contem estas, mas já introduz aquela, por ser contemporânea, julgo eu.
O significado que ali se encontra para este termo é: capacidade de ler e escrever. E logo a seguir exemplifica através de uma frase: “o índice de literacia dos portugueses é muito baixo”.
Acontece que não basta ler e escrever para melhorar o índice em causa, pois não é verdade que há muito menos analfabetos do que iliteratos?
Sendo assim, talvez fosse melhor atribuir-lhe o seguinte significado:
- Conhecimento do vocabulário suficiente que permita a uma pessoa compreender o que lê e escrever o que pensa.
Dezembro de 2001
O Latoeiro
As férias são uma oportunidade para afrouxar a tensão do quotidiano dando-nos a possibilidade de, nos novos espaços que se criam, dar mais atenção ao que nos rodeia.
Para além da observação das belezas da paisagem e de mais atenção dedicada à família resta-nos ainda algum tempo para ler as notícias do dia e paciência para ver o telejornal até ao fim. Claro que nos devemos munir com uma grande dose de indulgente pragmatismo, pois as coisas que se passam neste país nem sempre são muito agradáveis.
Como reagir aos problemas de injustiça - Criados por decisões ou noutros casos por falta delas - com que constantemente somos confrontados?
O imposto sobre as mais valias estaria em vigor; não haveria pessoas expulsas da terra onde vivem por serem de etnia cigana; não haveria pessoas esventradas nas largadas de toiros; o Artº 31º da LDNFA teria sido revisto há muitos anos. Que dizer de um orçamento rectificativo de 150 milhões de contos, quando não há a coragem de cobrar dos “tubarões” aquilo que devem ao fisco? E o Sr. presidente detido no seu domicílio enquanto o violador é detido numa prisão comum e executado pelos outros presos? E um outro presidente separatista/autonomista, que chama nomes a toda a gente, incluindo ao mais alto magistrado da nação, comportando-se com se estivesse num couto privado, e apenas provoca uma indulgente risota nacional?
Contou-me o meu avô, quando eu era muito pequeno, que um certo juiz colocado na comarca de Tomar, corria o ano de 1948, pediu ao oficial de diligências que lhe alugasse uma casa para viver. Encontrou um primeiro andar numa rua perto do centro da cidade, e o juiz chegados os tarecos, ali se instalou. Todavia, passados alguns dias, queixou-se que a casa ficava por cima de um latoeiro, e não podia descansar com tanto barulho. O funcionário, comprometido, tratou de procurar outra casa, num sítio mais calmo, o que levou algum tempo. Quando por fim o conseguiu e foi informar o juiz, este respondeu:
- Agora não quero porque já me habituei ao barulho.
Também eu não quero outro país para morar. Habituei-me a este. E assim vou conseguindo encarar os acontecimentos sem perder o sono, que para mim é coisa sagrada.
Setembro de 2001
A Promessa
Que antigamente é que era bom!
Saudades do passado? Muito bem!
Saudosistas? Muito mal!
A casa do alfaiate ficava na rua principal, mesmo ao lado da igreja matriz e em frente da escola primária. Era um andar térreo, muito estreito, entalado entre dois prédios mais altos. Na fachada, uma pequena janela e uma porta com postigo deitavam para o passeio empedrado.
Entrava-se directamente na oficina onde o mestre atendia os clientes, enquanto as costureiras, sentadas em cadeiras muito baixas perto da janela, diligentemente iam caseando ou chuleando os fatos já quase prontos. De vez em quando davam uma furtiva espreitadela para a rua. Uma enorme mesa, onde a fazenda era talhada, ocupava a maior parte da sala. Ao fundo, uma cortina de cretone flo-rida escondia uma abertura que dava acesso à habitação propriamente dita.
Pela primeira vez passámos para além daquela cortina de cretone, e a mãe introduziu-nos num pequeno quarto sem janelas, mesmo ao fundo do corredor. Na penumbra, avistámos o Henrique sentado numa das três camas que constituíam o mobiliário. Com a cabeça entre as mãos chorava baixinho.
- A minha mãe tinha-me prometido um ovo estrelado se eu ficasse bem no exame - e redobrando o pranto - agora já não como o ovo estrelado!
Ninguém
A oliveira
O apito de plástico
O Massacre de Batepá
O adultério
Allan Kardec
- Olá, tudo bem?... Umas banalidades, às vezes uma crítica ao Presidente da Câmara, e o tempo ia decorrendo sem grande alvoroço.
- Já hoje estive a falar com a minha mulher.
Olharam uns para os outros, intrigados, sem perceberem, e um deles arriscou:
- E então o que foi que ela disse? Que estava revoltadíssima. Era o carro dos bombeiros avariado em pleno verão e ninguém para resolver o assunto, o velho que desaparecera misteriosamente do asilo da Misericórdia, as obras de restauração da praça de touros que há dois anos estavam emperradas…
- Vejam lá, que até se fartou de protestar porque há um ror de anos contratam sempre a mesma orquestra para as festas do santo padroeiro. Ela acha que deviam variar.
- Então, já hoje falou com a sua mulher? Que não tinha calhado, dificuldades de contacto, falta de concentração, ou simplesmente falta de tempo, eram as desculpas que adiantava. Uma vez, mal-humorado, respondeu:
- Estive mesmo agora a falar com ela.
- E que disse ela, que disse?
- Olhem, vejam lá, mandou-me à merda.
- Mas não perde pela demora. Já não devo durar muito, e quando lá chegar ela vai ver como lhe mordem - ameaçou.
- Tenha calma homem, isso nunca vai acontecer - respondeu o capelão militar - você nunca vai entrar no céu. À uma porque a porta é muito estreita, por outra acho que S. Pedro não usa serrotes.
A paranoia da segurança
- Oh Sr. Mata deixe-se de brincadeiras. Desse número já me respondeu o Epifânio da Silva, o Jeremias Falcato e o Miguel Cervantes. Eu sei que é o senhor. Vá lá, temos aqui um belo pacote de canais de TV a preços reduzidos.Outro dia fui assaltado mesmo à porta de casa por duas mulheres. Quando uma delas se inclinou para abrir a pastinha que trazia consigo, assustei-me, julguei que ia sair revólver. Afinal apontou-me uma colorida brochura das Testemunhas de não sei quê, que pensando bem, não é arma que se aponte a ninguém dada a sua perigosidade.Agora avisam-me que o perigo vem pela Net.Até apelidam de louco quem não usa meia dúzia de pseudónimos. Que até o pentágono é assaltado, acrescentam. Dão cabo das redes de comunicações, invadem os ficheiros secretos, bloqueiam os serviços de segurança, é o demónio à solta!Eu sei que não tenho a importância do pentágono, mas sei lá, podem tomar-me por um quadrado ou mesmo um triângulo e violarem a minha lista de endereços ou o meu livrinho de notas pessoais. Sabe-se lá!Bem, pelo menos, rectifiquei uma ideia que tinha. Julgava que estava a ficar maluco e afinal maluco é quem não se cuida. Por isso vou já a correr arranjar meia dúzia de pseudónimos. Porreiro, pá!
Ainda o novo acordo ortográfico
De cor
Conheço do mar a cor
Nos dias de céu cinzento
Mas ainda sei melhor
A cor do meu pensamento
Sei de cor do mar a cor
Nos dias de tempestade
Até sei a cor de cor
Duma vida sem idade
Só não sei de cor o quanto
Custa uma vida perdida
À procura dum encanto
Que não dura toda a vida.
Se de cor usasse acento
Ou a cor um chapéuzinho
Ninguém estaria atento
Ao comento do vizinho.
O Toureiro
Veio o lobo, ferrou-lhe uma dentada!
Veio o boi, arrumou-lhe uma marrada!
Ele contudo, manso como um lago,
Apenas lhe lançou um olhar vago…
João de Deus
Um amigo, já falecido, sempre que me encontrava, pedia-me:- Conta lá aquela do Zé Cassiano.Tinha-lhe caído no goto. Em memória da nossa amizade e do tempo em que convivemos em Angola, aqui vai a história.Nos anos 40 praticava-se bastante uma modalidade de festa brava, que creio ter caído em desuso - eram as vacadas. Tinha muito mais atractivos para uma criança como eu do que a seriedade e monotonia das verdadeiras touradas. Durante as festas de Santo António, padroeiro da terra, realizavam-se sempre dois ou três espectáculos deste tipo, e pela mão do meu avô habituei-me a apreciar os personagens que evoluíam na arena. Nunca faltava o anão, que para fugir às marradas se escondia sob o estribo das trincheiras; o saltador à vara, que quando o animal investia, pulava sobre ele com admirável elasticidade; ou ainda o homem-estátua que, completamente vestido de branco, permanecia de pé, imóvel, sobre uma barrica colocada no meio da praça.
Mas as vacadas também tinham uma parte reservada ao toureio a pé, o momento mais sério, que eu aguardava sempre com alguma ansiedade. Entre trincheiras, o meu ídolo, Zé Cassiano, aguardava a sua hora. De traje de luzes vermelho e ouro, a montera a preceito, bem descida sobre a testa, toureava na segunda praça mais antiga do nosso País, e tinha obtido grande sucesso em anos anteriores.
Naquele dia fatídico, quando saiu o animal que lhe coube em sortes, negro, cornalão, soprando fumaça pelas ventas e marrando furiosamente nas tábuas, ficou siderado. O resfolegar da besta, impregnou o ar da praça de um cheiro fedorento.
Então, o toureiro exímio, que eu admirava, com o nome e o corpo bem destacados nos cartazes afixados em todas as ruas de vilas e aldeias em redor, ficava-se assim?A muito custo, depois de alguns minutos que me pareceram anos, o seu peão de brega conseguiu convencê-lo a saltar para a arena, mas fê-lo pelo lado oposto àquele em que se encontrava o inimigo. Vagarosamente, sempre acompanhado (ou seria empurrado?) pelo seu peão, avançou com os braços levantados, segurando o capote estendido à sua frente, até muito perto do animal que entretido a cheirar as tábuas junto ao curro, nem deu pela sua presença. Zé Cassiano ainda arranjou ânimo para gritar:- Eh! Eh! Eh touro lindo!O animal virou lentamente a cabeça na sua direcção, mas nesse momento o meu herói já tinha largado o capote e à pernas para que vos quero, fugia direito ao outro lado da arena. O cornúpeto, esse ficou parado na sua querença natural, sem lhe ligar a mínima importância. Quando chegou à trincheira procurou saltar, mas o pé não atinou com o estribo, bateu com o peito nas tábuas e caiu para trás, de costas no chão, levantando uma nuvem de poeira.A praça inteira, já em silêncio, ouviu o grito lancinante:- Ai puta que me mataste!Nos anos que se seguiram ainda se realizaram algumas vacadas, mas o seu nome deixou de figurar no cartaz..
António Mata, Algueirão-Mem Martins (Sintra)
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Imagem: Touro na arena, acrílico s/ tela de Paula Navarro
Delirium
Examinando melhor, vislumbramos um querubim no topo da fantasmagoria que para além da inseparável corneta que o caracteriza, assume a posição de quem vai defecar. Em baixo, uma procissão de sapos que se dirige para lado nenhum levanta os esbugalhados olhos para cima temendo o pior. No canto do lado esquerdo estão sentadas duas megeras vestidas de negro. Uma levanta ao alto um cartaz que diz: Quem te avisa teu amigo é! A outra, mais incisiva, informa: Hoje em S. Miguel, amanhã no Paquistão!
No centro, bem no centro da tela, um Zé-povinho faz o seu gesto característico.
Então vejamos:
Se neste mundo se morre ao ritmo de milhares de pessoas por minuto, libertando para a estratosfera idêntico número de espíritos que precisam de ser realojados porque razão os delegados de propaganda só aparecem quando há uma catástrofe que, ao fim e ao cabo, só produz uma ligeiríssima inflação no deve e haver da Vida… ou da Morte?
Seja em Nova Orleães, na Índia, no Afeganistão ou no Iraque a exploração da morte para fins propagandísticos é um triste e deplorável exemplo de oportunismo… que se pretende dourar com uma pitada de valores humanistas.
Ah, seus grandes malandros, sempre à espreita de um sinal de fraqueza que vos escancare a porta.
- Entrai, entrai! Bem-vindos sejais! Que trazeis hoje no bornal? Espíritos malignos, tendes? Queria oferecer um à minha vizinha que vai dar à luz amanhã. Era para lhe fazer a vida tão negra como a minha. Ah, só trazeis espíritos papa-açorda? Passai por cá mais tarde, talvez lhes arranje colocação.
Tudo bem! Pode haver inflação de desencarnados. Outra coisa não seria de esperar com a crise que vai no Benfica.
Será que encarnarão no Sporting? Ou no Porto?
Gira o disco! A banda dos Bombeiros Voluntários da Minha Terra ataca o “Mundo cani” de Bernal.
Não conheceis?
Também não faz mal.
António Mata
Quadro de Hieronymus Bosch – Paraíso Terreno