sábado, 30 de agosto de 2008

O Bufo Real

Este é o verdadeiro bufo.
Ave nocturna que dá guinchos tristes. Semelhante à coruja e ao mocho é todavia maior. Em Portugal pode encontrar-se o bufo real no Parque Natural do Douro Internacional, de que aqui apresentamos este magnífico exemplar.

Por incrível que pareça um bufo muito grande não se chama bufão.
Bufão é um bobo da corte, que se apresenta como andarilho esfarrapado acompanhado de um pequeno cão. Sei isto porque quando aprendi cartomancia com o Florbela e a Maia fiquei a saber que o bufão está na carta zero do tarô.

E que significado tem isso? - Perguntais vocês agora:
- Mestre, que significado tem isso, afinal?
Significa inexperiência e busca de sabedoria.

(Elementos extraídos da Biblioteca Mundial cujo acesso está à distância de um pequeno clique)

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A blasfémia

A blasfémia só existe quando o receptor se sente agredido.
Isto é, se dois ou três ateus se entretiverem em amena cavaqueira a blasfémia não entrou. Também é muito difícil que ela surja entre praticantes da mesma religião. O problema coloca-se quando invadimos as religiosidades alheias menosprezando as suas crenças e as suas divindades.

Como ateu devo ter blasfemado “à séria” em muitas circunstâncias da vida. Tenho contudo o cuidado de arrear as velas assim que me apercebo do incómodo do interlocutor.

Recordo que deixei de fazer relatos das minhas conversas com o Gualdim Pais embora as tenha psicografadas num caderno que comprei para o efeito. Não são publicáveis porque só dão para fazer um livro de 99 páginas. Logo que tenha oportunidade de revisitar o Castelo do Almourol vou tentar mais uma entrevista com o Gualdim para atingir as 150. Parei com essas revelações porque me apercebi que estava a incomodar um amigo que desbravava o Allan Kardec e citava frequentemente o Xico Xavier.

Os extraterrestres, por exemplo, mais alguém me ouviu falar neles? Alguma vez eu ia negar que eles “andem” por aí sobrevoando cidades e vilas para vigiar o nosso comportamento?
Se houve uma onda de indignação do mundo muçulmano por causa das caricaturas de Maomé é absolutamente normal que o mundo católico seja invadido por uma onda de repulsão a propósito do “sapo crucificado”.

Se o Papa vem exigir que a escultura seja retirada da exposição em que se encontra,

podemos concluir que os comentários dos líderes religiosos muçulmanos não eram assim tão despropositados ou tão fundamentalistas.

Do mesmo modo, gostava de ouvir agora uma opinião sobre a ameaça à liberdade de imprensa que muitos comentadores admitiram naquela altura.

Quando se trata de elaborar regras de conduta e as respectivas leis que as enquadrem e defendam é obrigatório que sejam universais,
Ou então isto é tudo uma grande cegada, é o salve-se quem puder, é o “cada um ao seu e todos ao mesmo”.
A.M.

P.S. - "À séria" é uma locução (suponho que seja isso) muito em voga entre gente fina da nossa sociedade. Não gosto dela, "prontos", não gosto. Todavia tenho que me treinar não vá a Lili Caneças convidar-me para uma vernissage e apanhar-me desactualizado.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

domingo, 24 de agosto de 2008

Tapar o sol com a peneira

Quando documentos secretos são desclassificados e revelam mentiras de há 25 anos atrás o impacto na opinião pública tem muito pouco significado. Mas as pessoas mais atentas que conhecem desde a infância a parábola do "lá vem o lobo" não deixarão de considerar de quem é a voz. Estávamos em Fevereiro de 2006.
Não é a primeira vez que faço alusão ao facto de os EUA desclassificarem documentos secretos logo que atinjam a bonita idade de 25 anos. Não serão todos, como é evidente, mas qual será o país que tem uma posição mais aberta do que esta no que respeita a revelar as suas “intimidades”?
A última vez que referi este facto foi a propósito de um caso português, que passados mais de 36 anos ainda está no segredo dos deuses, porque existem familiares que se podem melindrar. São assuntos importantes que deviam estar já acessíveis para consulta de investigadores de modo a que se possa fazer a história correcta desse período.
Quando tanto se fala no direito à informação e liberdade de expressão por causa de umas garatujas, muito me admira que ninguém tenha uma palavra a dizer sobre o modo como são classificados certos documentos e ao tempo de retiro a que os sujeitam.

Tendo, portanto, uma posição bastante liberal no que respeita a este assunto não posso deixar passar em claro a notícia de que nos EUA a administração bushiana mandou reclassificar milhares de documentos.
Isto é, documentos que deixaram de ser confidenciais e que há muito tempo estavam à disposição de toda a gente para consulta, voltaram a ser confidenciais.
Ou seja, cerca de 55.000 páginas de documentos depositados nos Arquivos Nacionais e na Biblioteca Presidencial, alguns com mais de 50 anos e já largamente consultados e difundidos através de livros e revistas dos mais variados autores, voltam para a arca dos classificados. Top-secret.
Como assim?
Como é possível, escondendo agora os originais, desvalorizar ou anular tudo o que com base neles já foi revelado?
Esta administração "amaricana" ainda não fez uma única desclassificação de documentos desde que está no poleiro. A última foi feita em 1995 pela administração americana chefiada por Bill Clinton e muito material disponibilizado nessa altura está agora de volta ao baú.
Ou seja os amaricanos não confiam nos americanos!

Os investigadores, que como o historiador Matthew Aid, tenham em seu poder cópias de documentos que consultaram legalmente, ficam agora sujeitos a prisão por terem, de um momento para o outro e enquanto dormiam a sesta adquirido o estatuto de espiões em cuja posse se encontram documentos altamente secretos.

Talvez, até a pena de morte impenda sobre as suas cabeças!
Que triste sina.
A.M.

PS. Isto é tudo mentira. É apenas o relato mirabolante de um pesadelo que tive a noite passada quando fervilhava a 40 graus por mor de um ataque de paludismo.

sábado, 23 de agosto de 2008

O Director Adjunto




A propósito de um editorial do Sr. Luís Delgado, em que se mostrava muito preocupado com a vinda de um palestiniano para Portugal, na sequência da ocupação da Igreja da Natividade. (Outubro de 2003)



O Sr. Director Adjunto anda com muito mau aspecto. O cenho carregado e as olheiras roxas, enormes, penduradas das pálpebras, juntamente com a sua extrema magreza, tornam-no irreconhecível. Muito diferente, sem dúvida, da sorridente fotografia que ladeia os seus extraordinários editoriais.
Há quem diga que tudo começou quando o jornalista Sr. António Rodrigues, que de Jenim enviava as suas crónicas para o DN, se insurgiu contra o facto de uma pessoa, mesmo sendo Director Adjunto e sem desenfiar as pernas de sob a sua secretária, sabia tanto do que se tinha passado naquela cidade. Não se sabe se o repórter pediu a demissão, mas disse-lhe com muita rudeza, que não podia tolerar que um chefe acreditasse mais na secreta israelita do que nele próprio, que correndo o risco de levar com um balázio, tinha os olhos em cima dos aconteci-mentos. Nesse dia já nem almoçou e à noite teve alguma dificuldade em adormecer. Ninguém gosta de ter conflitos com os seus subordinados, pelo que ficou realmente muito incomodado.

Ainda não tinha recuperado totalmente deste episódio quando soube que ia chegar a Lisboa um dos 13 palestinianos da Igreja da Natividade. Nem queria acreditar. Queria lá saber que o Ministro dos Negócios Estrangeiros dissesse que o homem não era nenhum cadastrado e nem sequer havia indícios de que tivesse cometido qualquer crime.

Era ou não verdade que numa linda e calma noite de luar, sem que nada o fizesse prever, a igreja fora invadida por aqueles 13 energúmenos que durante semanas mantiveram cativas centenas de pessoas que àquela hora participavam devotamente num acto litúrgico? Enquanto cá fora a vida decorria rotineiramente, lá dentro praticavam-se as maiores sevícias. Aquelas bestas chegaram mesmo ao ponto de partir um crucifixo com o intuito de fazer umas talas para um braço partido e urinaram no cálice sagrado, pasme-se.

Agora, Portugal inteiro ia ter que ficar de atalaia. Um desses monstros aprestava-se para provocar o caos num país tão sossegadinho como o nosso.
Annan Tanjeh pode estar sentado ao nosso lado no café ou no cinema, passar por nós na rua, pode até ser o condutor do autocarro 17, ou o técnico que vem reparar o telefone, ou quem vem contar a electricidade... Quando chegar o Inverno, muito cuidado com os carrinhos das castanhas assadas - podem estar armadilhados.

O Sr. Director Adjunto não dorme desde então. Corre para casa logo que se liberta dos compromissos diários, e tranca-se. Chapeou a porta da rua com aço e mandou montar uma daquelas fechaduras alemãs que custam uma dinheirama. Antes de se deitar, revista toda a casa, não se esquecendo de espreitar debaixo da cama e mesmo dentro dos armários da cozinha. Quem sabe se o vândalo não é anão? Dorme aos solavancos ao ritmo de pesadelos medonhos e nem o polícia que a Administração Interna destacou para a sua porta lhe traz alguma tranquilidade. Quem sabe ele não é o Alan Tanjeh?
Pobre Sr. Director Adjunto!

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Francisco Lázaro



Qualquer opinião deve ter uma boa base.
Proponho esta polemicazinha para animar as hostes:

Chovem comentários de toda a ordem sobre os Jogos Olímpicos:
Quem ganha mais medalhas, quem devia ganhar algumas e não ganha nada, quem é apoiado e quem não é, quem diz que é melhor ficar na caminha e quem ache que se deve sofrer até cair para o lado.

Não vou comentar nada nem ninguém, sem primeiro dizer isto:

Estes jogos não são olímpicos.
Será que Lázaro, que morreu por desidratação na maratona de Estocolmo em 1912 tinha apoios do estado ou de alguma fábrica de sapatilhas?
Ele era carpinteiro, não tinha treinador e a sua performance devia-se à corrida diária que fazia de casa para o trabalho.

Em meados dos anos cinquenta também fiz umas corridas e até cheguei a participar num campeonato de iniciados em representação do Benfica que me pagava o dinheiro dos transportes para os treinos no velho Campo Grande, perante a apresentação dos respectivos bilhetes. Tomás Paquete ainda corria, Matos Fernandes ainda saltava barreiras e o treinador era Fernando Ferreira.

Nesse tempo os atletas eram na sua maioria amadores e não era raro haver alguns desclassificados nos Jogos Olímpicos por se descobrir que tinham recebido “prendas” de entidades comerciais ou industriais.
Era inconcebível haver profissionais a disputar provas nos Jogos desse tempo.

O vil metal corrompeu os ideais olímpicos. Não se concebe que um atleta profissional, como Ronaldinho, Messi ou a maioria dos jogadores da NBA tenham apoios estatais para participar nos Jogos Olímpicos.

Transformem as Olimpíadas num campeonato do mundo que integre todas as modalidades, porque o espírito que devia presidir a estes Jogos já foi adulterado há muito tempo:

Posto isto, todos os comentários feitos sobre tudo o que se tem passado no que respeita ao nosso comportamento na China, passará a ter outro sentido.
A.M.

domingo, 17 de agosto de 2008

"O VOADOR"


A revista periódica "O VOADOR" é ainda hoje órgão de comunicação do Clube dos Sargentos da Força Aérea Portuguesa.
Durante alguns anos redigi os seus editoriais, alguns dos quais por continuarem a focar problemas actuais, aqui deixo colados sem preocupação de ordem cronógica.

Arte ou ciência?

Regemo-nos por um sistema político de partidos e se é certo que eles não se constituíram para estarem de acordo entre si acerca do que é necessário fazer para governar o País, não é menos verdade que a ausência de acordos, regras de conduta, ou mesmo de um código deontológico origina prejuízos que, mais tarde ou mais cedo todos teremos de pagar.
Não interessam os compromissos assumidos, as despesas feitas com estudos, projectos, expropriações e mesmo em trabalhos já iniciados. Os novos responsáveis, assim que assumem funções, encomendam logo uma auditoria, revogam decisões dos seus antecessores e em seguida, se necessário, deitam abaixo o que foi feito e mandam construir mais ao lado.
Ainda as eleições vão no adro e já se projecta inverter o sistema de eliminação dos resíduos sólidos, o aeroporto da Ota volta a ser contestado, o Euro 2004 está mais para lá (Espanha) do que para cá, e talvez algumas mentes cogitem em suspender as obras do Alqueva.
Creio que foi no “Mosquito” ou então no “Mundo de “Aventuras”, que há cerca de 60 anos li a história da vida de Thomas Alva Edison. Muito tempo passou, mas não mais esqueci uma curta passagem, reveladora do carácter desse físico eminente. Depois de ter falhado mais uma das centenas de experiências efectuadas, na procura de uma liga ideal para o filamento da lâmpada de incandescência, o seu assistente, desanimado, observou:
- Mestre, tanto trabalho para nada.
Ao que Edison retorquiu:
- Tudo o que fizemos até agora fica registado, e mesmo que não consigamos atingir o nosso objectivo, quem vier depois de nós não terá de repetir as experiências falhadas.

Esta atitude, que é absolutamente vulgar no campo científico por ser parte integrante do próprio método, tornou-se, ao longo dos anos, importante em todas as áreas do conhecimento. Registar todos os dados e informar correctamente quem nos substitui numa determinada função - quer seja na vida militar, numa fábrica ou mesmo na nossa própria casa - é fundamental para evitar bloqueios ou derrapagens na persecução dos objectivos.
Se a política, sendo uma arte, também pretende ser uma ciência, os políticos devem abandonar a atitude do bota-a baixo e dar mais atenção ao método. O País só beneficiará com isso.
Abril de 2002

O Sofisma

Quando medeiam alguns anos entre duas afirmações de sentido oposto, a pessoa que as proferiu pode sempre argumentar que entretanto evoluiu e se adaptou a uma nova realidade, ou então que as circunstâncias mudaram, o contexto é outro, e ainda pode, simplesmente, fazer um desmentido.
Para atenuar a má impressão que isso possa causar, tem ainda a possibilidade de acusar os adversários de serem monocór-


dicos, pouco imaginativos ou mesmo de terem engolido uma cassete. Dá muito bom resultado, pois desloca-se o ponto de focagem para outro lado.
Mas quando, entre duas informações contraditórias e incoerentes medeia apenas o espaço entre dois almoços, torna-se mais difícil arranjar uma justificação. Neste caso a única desculpa possível tem origem na carta dos vinhos.
Conheci um criador de gado para abate que lamuriava por lhe pagarem pouco pelas reses, mas barafustava violentamente pelo preço que lhe pediam pelos bifes. Também toda a gente se lembra do “sketch” da saudosa Ivone Silva em que se focava a enorme contradição entre a Olívia patroa e a Olívia costureira.
Calígula, por exemplo, era um verdadeiro sofista na sua crueldade: declarava que puniria os cônsules se eles celebrassem o dia de festa instituído em memória da vitória de Áccio, e que os puniria se não o celebrassem.
Vem tudo isto a propósito da campanha para as autárquicas que alguns candidatos já estão fazendo. Não serão tão cruéis como Calígula, mas são certamente tão sofistas como Protágoras. Sem terem o cuidado de ler os discursos anteriores, defendem o que criticaram e criticam o que defenderam; conforme a hora e o local são pró ou anti regionalistas; condenam promessas dos opositores que eles próprios mantém nos seus programas eleitorais.
Dezembro de 2007

Da literacia

De vez em quando uma determinada palavra irrompe no nosso quotidiano. Chega até nós através de todos os meios de informação; surge em debates televisivos, nos noticiários e nos artigos da imprensa. Umas vezes é uma nova palavra, outras, um velho vocábulo enterrado nas profundezas dos dicionários do meu avô. Como todas as modas, depois de muito usada vai parar ao caixote do lixo.
Literacia é, neste momento a palavra eleita. Mal acabei de a escrever, logo o corrector ortográfico do meu PC a sublinhou de vermelho, mas eu zás, ordenei que fosse adicionada. Como é fácil introduzir palavras nos dicionários!

Não é uma palavra nova, contudo não consta do Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António Morais da Silva, editado segundo o acordo ortográfico de 1945. Mas constam outras, como literatejar, literatice, ou literateiro que tal como aquela derivam de literato. Mas o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, exaltado por uns, e vilipendiado por outros, não contem estas, mas já introduz aquela, por ser contemporânea, julgo eu.
O significado que ali se encontra para este termo é: capacidade de ler e escrever. E logo a seguir exemplifica através de uma frase: “o índice de literacia dos portugueses é muito baixo”.
Acontece que não basta ler e escrever para melhorar o índice em causa, pois não é verdade que há muito menos analfabetos do que iliteratos?
Sendo assim, talvez fosse melhor atribuir-lhe o seguinte significado:
- Conhecimento do vocabulário suficiente que permita a uma pessoa compreender o que lê e escrever o que pensa.

Dezembro de 2001

O Latoeiro

As férias são uma oportunidade para afrouxar a tensão do quotidiano dando-nos a possibilidade de, nos novos espaços que se criam, dar mais atenção ao que nos rodeia.
Para além da observação das belezas da paisagem e de mais atenção dedicada à família resta-nos ainda algum tempo para ler as notícias do dia e paciência para ver o telejornal até ao fim. Claro que nos devemos munir com uma grande dose de indulgente pragmatismo, pois as coisas que se passam neste país nem sempre são muito agradáveis.
Como reagir aos problemas de injustiça - Criados por decisões ou noutros casos por falta delas - com que constantemente somos confrontados?
O imposto sobre as mais valias estaria em vigor; não haveria pessoas expulsas da terra onde vivem por serem de etnia cigana; não haveria pessoas esventradas nas largadas de toiros; o Artº 31º da LDNFA teria sido revisto há muitos anos. Que dizer de um orçamento rectificativo de 150 milhões de contos, quando não há a coragem de cobrar dos “tubarões” aquilo que devem ao fisco? E o Sr. presidente detido no seu domicílio enquanto o violador é detido numa prisão comum e executado pelos outros presos? E um outro presidente separatista/autonomista, que chama nomes a toda a gente, incluindo ao mais alto magistrado da nação, comportando-se com se estivesse num couto privado, e apenas provoca uma indulgente risota nacional?
Contou-me o meu avô, quando eu era muito pequeno, que um certo juiz colocado na comarca de Tomar, corria o ano de 1948, pediu ao oficial de diligências que lhe alugasse uma casa para viver. Encontrou um primeiro andar numa rua perto do centro da cidade, e o juiz chegados os tarecos, ali se instalou. Todavia, passados alguns dias, queixou-se que a casa ficava por cima de um latoeiro, e não podia descansar com tanto barulho. O funcionário, comprometido, tratou de procurar outra casa, num sítio mais calmo, o que levou algum tempo. Quando por fim o conseguiu e foi informar o juiz, este respondeu:
- Agora não quero porque já me habituei ao barulho.
Também eu não quero outro país para morar. Habituei-me a este. E assim vou conseguindo encarar os acontecimentos sem perder o sono, que para mim é coisa sagrada.

Setembro de 2001




A Promessa




Vinde. Vinde cá dizer-me
Que antigamente é que era bom!
Saudades do passado? Muito bem!
Saudosistas? Muito mal!

durindana

A casa do alfaiate ficava na rua principal, mesmo ao lado da igreja matriz e em frente da escola primária. Era um andar térreo, muito estreito, entalado entre dois prédios mais altos. Na fachada, uma pequena janela e uma porta com postigo deitavam para o passeio empedrado.
Entrava-se directamente na oficina onde o mestre atendia os clientes, enquanto as costureiras, sentadas em cadeiras muito baixas perto da janela, diligentemente iam caseando ou chuleando os fatos já quase prontos. De vez em quando davam uma furtiva espreitadela para a rua. Uma enorme mesa, onde a fazenda era talhada, ocupava a maior parte da sala. Ao fundo, uma cortina de cretone flo-rida escondia uma abertura que dava acesso à habitação propriamente dita.

Era ali que vivia o Henrique, com os pais e mais cinco irmãos. Os mais velhos, um rapaz e duas raparigas trabalhavam na oficina com o pai. Os outros andavam o dia inteiro na rua.
Naquela época o Henrique era nosso colega na escola. A Grande Guerra só terminaria em 25 de Abril de 1945. Os adultos, para esquecerem as senhas de racionamento e as bichas, entretinham-se a colar tirinhas de papel nos vidros das janelas por causa dos ataques aéreos e à noite os miúdos deliciavam-se arrepiados com o toque das sirenes lembrando que era imperioso apagar as luzes.

Mais de metade da nossa turma andava descalça. Só algum tempo depois, Sua Excelência decretou a proibição dos pés nus, que deu azo ao grande incremento, extraordinário incremento da alparcata. O Henrique ostentava o seu pé descalço com tanto à vontade, que a minoria até sentia vontade de mandar as suas belas botas de atanado para as urtigas. Mas não era só por isso que ele se impunha. No berlinde ou no pião era o maior. Quando, no verão, calhava ir roubar uvas, era o primeiro a lançar-se ao rio, e só lhe víamos os calcanhares a bater compassadamente na água levantando cachões de espuma. Ainda nós íamos a meio da viagem já ele do outro lado se sacudia. Fazia milagres com a trapeira, sendo, aliás, o detentor do recorde de toques sem a deixar cair no chão.

Mas onde ele fazia furor era na bilharda, não havendo ninguém que o conseguisse desalojar do centro da roda. Na sua mão o pau zunia certeiro enviando a bilharda a dezenas de metros de distância. Na escola não era, contudo, tão brilhante, e reprovou no exame da 3ª classe. Quando soube o resultado desatou num pranto que nos comoveu. Mais tarde, não tendo aparecido para as brincadeiras do costume, resolvemos ir visitá-lo a casa, para lhe dar algum alento.
Pela primeira vez passámos para além daquela cortina de cretone, e a mãe introduziu-nos num pequeno quarto sem janelas, mesmo ao fundo do corredor. Na penumbra, avistámos o Henrique sentado numa das três camas que constituíam o mobiliário. Com a cabeça entre as mãos chorava baixinho.

Procurámos animá-lo. Haveria outras oportunidades… que para a próxima vez iria conseguir… que um ano perdido não era assim tão importante… enfim, aquelas coisas que se dizem nestas ocasiões para equilibrar o desconsolo.
Em vez de acalmar desatou num grande choro, e titubeou:
- A minha mãe tinha-me prometido um ovo estrelado se eu ficasse bem no exame - e redobrando o pranto - agora já não como o ovo estrelado!

Ninguém






Logo à saída do elevador no 4º andar da clínica onde se situam os cuidados paliativos está um poster em que se destaca a frase: “Qualidade de vida até ao fim”. Talvez a maioria dos doentes não passe por este local, ou passando não o veja, ou vendo-o não o leia, ou lendo-o já não tenha o discernimento suficiente para perceber que vai entrar no corredor da morte, embora, como enunciado, com toda a qualidade possível. Se alguém, por maior sacana que seja, não se emocionar com isto, só pode ser... ninguém.

A oliveira

No cimo do quintal havia uma oliveira centenária. Com as pedras que havia por ali a miudagem construiu um muro á sua volta e deixou uma pequena abertura por onde, de rastos, penetrávamos no seu interior. Era o “Forte Apache”. Com pistolas de pau e arcos de varetas de chapéus-de-chuva, uns a defender e outros a atacar, procurávamos imitar as cenas dos filmes que nos chegavam da banda de lá. No centro do forte a velha oliveira era a referência.Escondidos entre os seus ramos observávamos a aproximação do inimigo e orientávamos as forças defensivas.

No fim dos “combates” nunca se sabia muito bem quem eram os vencedores e os vencidos. Não havia mortos e só de longe em longe um pequeno arranhão exigia o recurso ao mercurocromo. Nem mortos nem feridos!


Ainda há pouco tempo fui espreitar o local. Expliquei aos actuais locatários este mórbido desejo de “morder” o pó do passado. Foram muito simpáticos. A velha oliveira, agora com mais sessenta anos no pelo, ou seja, no tronco, lá está firme como se ainda esperasse que a juventude actual trocasse a virtualidade de um videojogo pela imitação esforçada na própria arena.


Claro que houve algumas ajudas para esta evocação. Primeiro foi a leitura de uma notícia que dava conta do cuidado que deve haver nas tintas usadas nos parques infantis. Alguma delas são tóxicas e representam perigo para as crianças usuárias desses espaços. Em segundo lugar foi a agradável constatação de não haver ninguém a pintar ramos de oliveira há sessenta anos, pois agora poderia não estar aqui a evocar a velha oliveira tantas vezes esgatanhada pela miudagem.


OBS: Texto dedicado a participante do Fórum do JN que usava o pseudónimo de Pinto Ramos de Oliveira

O apito de plástico

Quando soube que tinha sido dado o nome de “apito dourado” a uma investigação da Judiciária, lembrei-me de contar a história do meu apito de plástico, de cor azul, que trago sempre comigo quando ando na rua.Embora não tenha nada a ver com árbitros, este chichorrobio tem, contudo, alguma ligação com o crime.Tudo começou quando recebi uma chamada telefónica do meu irmão mais novo para me dizer, muito excitado, que tinha sido assaltado na rua.- Estás em casa? Vou já aí – disse eu.
Fui encontrá-lo com as canelas numa desgraça e um grande hematoma na cara:
- Eh pá, saio do comboio nas Mercês, venho pelo passeio, direito a casa, e a meio do caminho sinto-me agarrado por trás. Procurei segurar a mala que trazia a tiracolo, mas aparecem mais dois mânfios para ajudar à festa, entalam-me entre dois carros que estavam estacionados e vai de malhar. Quando percebi que não me largavam deixei ir mala e eles fugiram. Tinham-me saltado os óculos da cara, e foi uma senhora, que entretanto apareceu, que os encontrou debaixo de um dos carros. Vê lá tu que vinham montes de pessoas, saídas do comboio, pela rua fora e fugiu toda a gente. Depois fui apresentar queixa ao posto da GNR, que fica a uns 50 metros do local onde fui assaltado. Já sei que não serve de nada, enfim, talvez sirva para as estatísticas – Ria-se enquanto contava estas peripécias e eu pensei que eram nervos por estar em cima do acontecimento. É então que ele explode:- Vou tirar a licença de uso e porte de arma e comprar uma pistola!
Foi nessa altura que comecei a ficar preocupado. Como sou adepto da teoria de que a violência só gera mais violência procurei dissuadi-lo:- Míope como tu és ainda acertas em alguém que vai a passar, ou tiram-te a pistola e levas um tiro com a tua própria arma… Tem calma.Para desanuviar o ambiente sugeri:- Faz o seguinte. Chegas à estação e telefonas para o posto da GNR a pedir uma escolta para te levar a casa. Diz que tens medo que os assaltantes te venham dar uns sopapos por não terem encontrado nada de valor dentro da mala.
Quando mais tarde o deixei já estava mais calmo. Pelo caminho vinha pensando no assunto e no que se poderia fazer para enfrentar situações deste tipo. Pondo de parte a violência e as milícias populares que se poderá fazer? A primeira ideia que se perfilou (desculpem o militarismo) no meu espírito, foi a de passar a transportar usualmente uma bomba com controlo remoto dentro da pasta, que eu calmamente faria explodir quando os larápios em fuga virassem a primeira esquina. Mas logo risquei essa hipótese por causa da tal não-violência que me caracteriza, e que leva algumas pessoas a classificar-me de pacifista. Talvez uma sirene electrónica também controlada à distância, bem arrumadinha num canto da mala. Não era nada mal lembrado! O gajo não deveria gostar de ser confundido com uma ambulância e largaria o produto do roubo como se lhe queimasse as mãos. Foi, então, que me lembrei dum apito.No dia seguinte fui às compras. Corri algumas lojas até encontrar um que tivesse o som bem penetrante e sibiloso. Deve servir os meus intentos, pois quando o experimentei no quintal, os pombos que estavam num telhado a dois quarteirões de distância voaram apavorados, os cães da vizinhança começaram a ladrar e até a Micas que mora na casa em frente e é surda que nem uma porta veio à janela julgando que era a polícia.Nesta altura já não é preciso explicar mais nada. Agora, quando ando na rua, levo o apito na mão, pronto a usá-lo ao primeiro sinal de ataque. Se é de noite já o levo na boca de modo que à primeira cacetada desato logo a apitar.E seja o que Deus quiser!
Já lá vão mais de três semanas e ainda não vos posso informar se este método resulta pois ainda não fui atacado. Não deixarei de o fazer, pela estima que todos vocês me merecem!

O Massacre de Batepá



Rememorar os episódios da nossa juventude é a propensão natural das pessoas da nossa idade, principalmente quando reunidos a propósito de qualquer evento a memória se desata e imagens que julgávamos arquivadas para sempre se projectam com enorme nitidez. Creio que é um acto salutar desde que não se passe da saudade para o saudosismo, que não são, propriamente, uma e a mesma coisa.

Contudo, nem sempre é agradável recordar factos do passado. Há quem não goste e reaja com muito mau humor quando se revelam estórias, mesmo que sobre elas tenha decorrido mais de meio século. Omiti-las quando são importantes pode falsear a verdade histórica.

Todos os colegas que passaram pela Base Aérea nº 1 em Sintra em meados dos anos 50 recordam um comandante de companhia que em determinada altura elegeu como mascote um pastor alemão, tendo-lhe construído um “palácio” numa área adjacente ao seu gabinete. Chamava-se Fernando Santos Ferreira e era primo de Santos Costa, ministro de Salazar.
Naquela época todos achámos muita graça quando ele aplicou dez dias de prisão ao canídeo por ter entrado inopinadamente na secretaria e ter enlameado com as patas os documentos que estavam sobre as secretárias. Talvez alguns ainda se recordem que a versão oficial dos problemas na Índia a partir de Dadrá e Nagar Aveli, nos foram transmitidos por esse capitão num “briefing" que teve lugar numa velha garagem de camionetas, naquela altura a funcionar como cinema. Salazar, que defendia o “sacrifício total” na defesa do império ultramarino, promoveu a herói o guarda fronteiriço Aniceto do Rosário, que Santos Ferreira não tratou muito bem, tendo apresentado uma versão diferente sobre o seu comportamento perante o inimigo. Naquela altura muitos de nós louvámos a sua coragem, embora sabendo da sua ligação familiar com o ministro.

O que desconhecíamos nessa altura e muitos ainda hoje não saberão é que Santos Ferreira, o nosso comandante de companhia, estivera pouco tempo antes envolvido num dos mais vergonhosos actos do nosso colonialismo, que ficou conhecido como a “Guerra do Batepá”Em Fevereiro de 1953, sendo governador de S. Tomé e Príncipe Carlos Sousa Gorgulho, na sequência de alguma agitação provocada por algumas medidas contidas no Plano de Fomento e mal recebidas pelos roceiros por fazerem perigar a mão de obra escrava que utilizavam, deu-se um massacre que vitimou cerca de um milhar de trabalhadores nativos. Chacinados e deitados ao mar segundo ordem directa de Gorgulho: - “Deita essa merda ao mar para evitar mais chatices”.
O Tenente Santos Ferreira, homem do Governador, tinha sido chamado para o cargo de comandante da polícia em substituição do Capitão Salgueiro Rego, que se recusara a pactuar com o plano do governador, sendo posteriormente preso e embarcado para o Continente.Eduardo Alexandre Viegas Ferreira de Almeida no livro “Quarenta anos de aviação” e publicado por sua mulher já depois da sua morte, relata-nos estes acontecimentos, atribuindo a Santos Costa o nome que foi dado a esta guerra por, quando assistia aos interrogatórios, recomendar:- “Bate, pá! Bate com força que o gajo acaba por confessar. Bate, pá!”.Transcrevo uma passagem do seu relato:“A pequena cadeia, mesmo no centro da cidade, estava superlotada. Os gritos dos presos ouviam-se em toda a cidade. Pela madrugada, uma camioneta carregava os mortos na cadeia e ia deitá-los ao mar, onde os tubarões os faziam desaparecer. Numa noite de excepcional calor, numa cela onde caberiam, apertados, uns quinze presos, morrem sufocados cerca de uns cem!”

Também José Alvarenga filho do Coronel Clodomir Alvarenga, no seu sítio http://www.alvarenga.net/pai.htmlww.alvarenga.net/pai.html nos relata este episódio, visto que seu pai, ainda em 1953, como capitão, foi enviado para S.Tomé para substituir Santos Ferreira, logo após terminado o massacre. Os três longos anos que se seguiram de investigações e julgamentos revelaram que poucos esforços foram feitos para apurar a verdade, tendo o Governo Português mandado encerrar as investigações em 1956. Clodomir Alvarenga terá mesmo afirmado:- “Aquilo tratou-se de uma tentativa de extermínio e era impossível que Salazar, sempre tão bem informado, o desconhecesse”.Sobre este episódio colonialista ocorrido em pleno Estado Novo existe hoje um acervo inesgotável de informação, que inclui depoimentos de pessoas que directa ou indirectamente o viveram. Não deixa de ser relevante mencionar a tendência, talvez não inocente, de alguns autores se lhe referirem como Guerra do Batepá, como se aqueles acontecimentos tivessem ocorrido durante a luta armada e organizada.Pormenores escandalosos relacionados com a exploração da mão-de-obra escrava, feita pelo Governador Gorgulho para dar cumprimento a um plano de promoção pessoal, ao mesmo tempo que, para agradar aos roceiros, bloqueava algumas medidas liberalizantes emanadas do Governo Central, foram, efectivamente, a espoleta daqueles trágicos acontecimentos.O 25 de Abril de 1974 permitiu que fossem desvendados alguns actos odiosos da nossa história que, quer queiramos quer não, fazem parte do nosso passado comum. A verdade pode doer, mas deve ser revelada e assumida para que os alicerces do nosso futuro não fiquem minados à partida..
Imagens do monumento alusivo à escravatura em Zanzibar, Tanzânia

O adultério

Os sofrimentos porque passa um espírito, são sempre a consequência da maneira como viveu na Terra. Certo que já não sofrerá mais de gota nem de reumatismo; no entanto, experimentará outros sofrimentos que nada ficam a dever àqueles.
Allan Kardec


Vivia numa pequena casa pintada de branco, na rua de Baixo. Era um rés-do-chão alto, com duas amplas janelas debruçadas sobre o passeio, e entre elas, três degraus de pedra encimados por uma porta com aldrabas de ferro. Nos Invernos mais rigorosos o rio transbordava, inundava a Vila e houve mesmo um ano em que cobriu o segundo degrau, chegando a beijar a soleira da porta. A situação melhorou bastante quando construíram a barragem, e as cheias passaram a ficar circunscritas à parte mais baixa da povoação. Enviuvara cedo, a mulher fora apanhada na leva da pneumónica. Desde então vivia sozinho, fazendo traduções (dominava três idiomas), escrevendo romances do tipo Max du Veuzit e dando explicações a alunos com dificuldades nas línguas curriculares. Quando a electricidade chegou àquelas paragens rejeitou-a e quando a água foi canalizada também a dispensou. Cântaros e candeeiros a petróleo foram o ponto máximo de civilização que se permitiu.


Vestia sempre de preto, e poderia ser confundido com um seminarista da época não fora a sua farta cabeleira branca. Durante todo o ano, fizesse sol ou chuva a sua indumentária permanecia inalterável. Ainda o sol trepava pelo lado de lá do horizonte, já ele passeava pelos pinhais, com o seu passo miudinho e acelerado como se perseguisse algum estranho objectivo. Quando regressava a casa, passava normalmente pelo café do Largo do Chafariz e pedia um copo de leite e uma torrada.
- Olá, tudo bem?... Umas banalidades, às vezes uma crítica ao Presidente da Câmara, e o tempo ia decorrendo sem grande alvoroço.


Um dia tudo se alterou. Entrou, sentou-se, pediu o pequeno-almoço, e enquanto aguardava, calmamente, como que segredou para os da mesa ao lado:
- Já hoje estive a falar com a minha mulher.
Olharam uns para os outros, intrigados, sem perceberem, e um deles arriscou:
- E então o que foi que ela disse? Que estava revoltadíssima. Era o carro dos bombeiros avariado em pleno verão e ninguém para resolver o assunto, o velho que desaparecera misteriosamente do asilo da Misericórdia, as obras de restauração da praça de touros que há dois anos estavam emperradas…
- Vejam lá, que até se fartou de protestar porque há um ror de anos contratam sempre a mesma orquestra para as festas do santo padroeiro. Ela acha que deviam variar.


A partir daquele dia um ser do Além passou a ser a voz crítica de todos os acontecimentos e não acontecimentos daquela terra, ao ponto de algumas pessoas começarem a condicionar o seu próprio comportamento. Não que viesse daí grande mal ao mundo, antes pelo contrário, era até benéfico que as pessoas procurassem não errar com medo dum puxão de orelhas tão espiritual. Passou a ser normal, à hora do pequeno-almoço, naquele café de província, haver um pequeno espaço para saber novidades do outro mundo.


Creio que foi no princípio do Inverno de 1947 que esta situação sofreu um revés. Um dia apareceu sorumbático, calado, os olhos fugidios, e nunca mais foi o mesmo. Quando, mastigando a sua torrada e sorvendo ruidosamente o seu leite quente, se atrasava com o correio etéreo, as pessoas antecipavam-se ansiosas:
- Então, já hoje falou com a sua mulher? Que não tinha calhado, dificuldades de contacto, falta de concentração, ou simplesmente falta de tempo, eram as desculpas que adiantava. Uma vez, mal-humorado, respondeu:
- Estive mesmo agora a falar com ela.
- E que disse ela, que disse?
- Olhem, vejam lá, mandou-me à merda.


Este súbito azedume somado com uma alteração que se deu na sua rotina diária, despertou os mais atentos. Começou a frequentar o cemitério, não com muita assiduidade, diga-se em abono da verdade, mas só o simples facto de passar o tempo junto da campa da falecida, causou alguma estranheza às pessoas mais entrosadas com estas coisas do espírito. Quem é que não sabe que aquele que visita um túmulo apenas manifesta, por essa forma, que pensa no espírito ausente? A visita é a representação exterior de um facto íntimo. A prece é que santifica o acto de rememoração. Nada importa o lugar, desde que seja feita com o coração. Então porquê essa atitude deveras insólita?


Nunca iremos ter resposta para este enigma. O que sabemos resulta da versão do padre da paróquia que cumulativamente com as funções inerentes ao cargo, ainda dava aulas numa escola da região e como capelão militar acorria também a satisfazer as necessidades espirituais dos homens da guerra. Era um homem baixo e entroncado, tipo boxeur de sotaina, a qual só despia para ae suas lides castrenses. Injustamente tinha fama de violento, pois para além de um ou dois cachações a soldados dorminhocos e alguns carolos a alunos mais salientes, nada constava de desabonatório no seu currículo. Também se dizia que gostava da pinga, mas a única prova que havia era ele mandar o sacristão comprar vinho à taberna do Cipriano com tanta frequência e quantidade, que se fosse usado só para a santa missa, quando chegasse o momento de genuflectir, simplesmente cairia de borco. O que ficou provado, isso sim, foi o desbragamento da sua língua, pois uma vez em altos berros e em termos de fazer corar um carroceiro, mandou um grupo de mulheres para casa coser meias, só porque tinham a santa devoção de passar muito tempo na igreja. Não se faz.


Mas voltando à história. Contou ele que certo dia, quando saia do cemitério, depois de acompanhar um morto à sua última morada, foi interpelado pelo nosso homem que lhe pediu uns minutos de atenção para falar das suas preocupações. Então, voltou para trás e, conversando, acompanhou-o até à campa da mulher, onde com ar consternado lhe confidenciou que ela o traía com João Carpinteiro, entretanto falecido. Ela própria lho confessara, dando-se ao desplante de descrever pormenores dos momentos mais íntimos que lá no céu desfrutava com o João. Um horror! A adúltera!
- Mas não perde pela demora. Já não devo durar muito, e quando lá chegar ela vai ver como lhe mordem - ameaçou.
- Tenha calma homem, isso nunca vai acontecer - respondeu o capelão militar - você nunca vai entrar no céu. À uma porque a porta é muito estreita, por outra acho que S. Pedro não usa serrotes.

A paranoia da segurança


Condicionado pelas alarmantes notícias sobre segurança com que somos bombardeados todos os dias, já não tenho vida própria.Não abro a porta da rua sem me certificar através do sistema vídeo, entretanto montado à pressa, quem é o mânfio que toca à campainha; à noite, não me deito sem vasculhar todos os quartos e armários para confirmar que não há invasores; a minha mulher de pistola aperrada, com ordem para atirar a matar segue-me na vistoria; durante a noite, ao mais pequeno ruído, acordo em sobressalto e vou ajustar trancas e fechaduras; pela manhã, saio para a bica da praxe, mas vou munido do meu velho apito e agora também de um spray paralisante; tomo muita atenção a possíveis sinais que os gatunos têm a mania de pintar nos umbrais das portas para assinalar que o momento é favorável e espeto-lhe logo uma pintura em cima, que se lixam; ainda bem que as portas do carro se trancam automaticamente logo que começamos a andar pois podia-me esquecer de o fazer e nos primeiros sinais, tumba, era assaltado.Eh pá, eu sei lá! Normalmente não ando com mais de dois euros no porta-moedas e para alguma compra que os exceda meto uma nota de cinco dentro do sapato. Suspeitando que a tipa que me telefona para oferecer um serviço de banda larga mais em conta é agente de qualquer bando criminoso, dou um nome falso. Mas como não tomo atenção ao número de vezes que isso acontece, outro dia uma funcionária disse-me:
- Oh Sr. Mata deixe-se de brincadeiras. Desse número já me respondeu o Epifânio da Silva, o Jeremias Falcato e o Miguel Cervantes. Eu sei que é o senhor. Vá lá, temos aqui um belo pacote de canais de TV a preços reduzidos.Outro dia fui assaltado mesmo à porta de casa por duas mulheres. Quando uma delas se inclinou para abrir a pastinha que trazia consigo, assustei-me, julguei que ia sair revólver. Afinal apontou-me uma colorida brochura das Testemunhas de não sei quê, que pensando bem, não é arma que se aponte a ninguém dada a sua perigosidade.Agora avisam-me que o perigo vem pela Net.Até apelidam de louco quem não usa meia dúzia de pseudónimos. Que até o pentágono é assaltado, acrescentam. Dão cabo das redes de comunicações, invadem os ficheiros secretos, bloqueiam os serviços de segurança, é o demónio à solta!Eu sei que não tenho a importância do pentágono, mas sei lá, podem tomar-me por um quadrado ou mesmo um triângulo e violarem a minha lista de endereços ou o meu livrinho de notas pessoais. Sabe-se lá!Bem, pelo menos, rectifiquei uma ideia que tinha. Julgava que estava a ficar maluco e afinal maluco é quem não se cuida. Por isso vou já a correr arranjar meia dúzia de pseudónimos. Porreiro, pá!

Ainda o novo acordo ortográfico

Talvez o mais importante acordo ortográfico entre o Brasil e Portugal tenha sido aquele que foi estabelecido em 10 Agosto de 1945. O último acordo foi assinado em 16 de Dezembro de 1990 e nele já participaram também Angola, Moçambique, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau. Os Estados signatários deveriam tomar as providências necessárias com vista à elaboração de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas. Todavia, no corrector ortográfico dos nossos computadores continua a existir a escolha opcional entre o português de Portugal e o português do Brasil. Lamento muito que seja assim! Por isso não sei se esta rápida e fugaz intervenção sobre as excepções estabelecidas no referido acordo para as palavras homógrafas e oxítonas, no que respeita ao uso do acento gráfico, num espaço de poesia, será inteiramente compreendido.Aqui fica, com o meu pedido de desculpas:

De cor
Conheço do mar a cor
Nos dias de céu cinzento
Mas ainda sei melhor
A cor do meu pensamento

Sei de cor do mar a cor
Nos dias de tempestade
Até sei a cor de cor
Duma vida sem idade

Só não sei de cor o quanto
Custa uma vida perdida
À procura dum encanto
Que não dura toda a vida.

Se de cor usasse acento
Ou a cor um chapéuzinho
Ninguém estaria atento
Ao comento do vizinho.

O Toureiro



Veio o cavalo e deu-lhe uma patada!
Veio o lobo, ferrou-lhe uma dentada!
Veio o boi, arrumou-lhe uma marrada!
Ele contudo, manso como um lago,
Apenas lhe lançou um olhar vago…


João de Deus


Um amigo, já falecido, sempre que me encontrava, pedia-me:- Conta lá aquela do Zé Cassiano.Tinha-lhe caído no goto. Em memória da nossa amizade e do tempo em que convivemos em Angola, aqui vai a história.Nos anos 40 praticava-se bastante uma modalidade de festa brava, que creio ter caído em desuso - eram as vacadas. Tinha muito mais atractivos para uma criança como eu do que a seriedade e monotonia das verdadeiras touradas. Durante as festas de Santo António, padroeiro da terra, realizavam-se sempre dois ou três espectáculos deste tipo, e pela mão do meu avô habituei-me a apreciar os personagens que evoluíam na arena. Nunca faltava o anão, que para fugir às marradas se escondia sob o estribo das trincheiras; o saltador à vara, que quando o animal investia, pulava sobre ele com admirável elasticidade; ou ainda o homem-estátua que, completamente vestido de branco, permanecia de pé, imóvel, sobre uma barrica colocada no meio da praça.
Mas as vacadas também tinham uma parte reservada ao toureio a pé, o momento mais sério, que eu aguardava sempre com alguma ansiedade. Entre trincheiras, o meu ídolo, Zé Cassiano, aguardava a sua hora. De traje de luzes vermelho e ouro, a montera a preceito, bem descida sobre a testa, toureava na segunda praça mais antiga do nosso País, e tinha obtido grande sucesso em anos anteriores.
Naquele dia fatídico, quando saiu o animal que lhe coube em sortes, negro, cornalão, soprando fumaça pelas ventas e marrando furiosamente nas tábuas, ficou siderado. O resfolegar da besta, impregnou o ar da praça de um cheiro fedorento.
Então, o toureiro exímio, que eu admirava, com o nome e o corpo bem destacados nos cartazes afixados em todas as ruas de vilas e aldeias em redor, ficava-se assim?A muito custo, depois de alguns minutos que me pareceram anos, o seu peão de brega conseguiu convencê-lo a saltar para a arena, mas fê-lo pelo lado oposto àquele em que se encontrava o inimigo. Vagarosamente, sempre acompanhado (ou seria empurrado?) pelo seu peão, avançou com os braços levantados, segurando o capote estendido à sua frente, até muito perto do animal que entretido a cheirar as tábuas junto ao curro, nem deu pela sua presença. Zé Cassiano ainda arranjou ânimo para gritar:- Eh! Eh! Eh touro lindo!O animal virou lentamente a cabeça na sua direcção, mas nesse momento o meu herói já tinha largado o capote e à pernas para que vos quero, fugia direito ao outro lado da arena. O cornúpeto, esse ficou parado na sua querença natural, sem lhe ligar a mínima importância. Quando chegou à trincheira procurou saltar, mas o pé não atinou com o estribo, bateu com o peito nas tábuas e caiu para trás, de costas no chão, levantando uma nuvem de poeira.A praça inteira, já em silêncio, ouviu o grito lancinante:- Ai puta que me mataste!Nos anos que se seguiram ainda se realizaram algumas vacadas, mas o seu nome deixou de figurar no cartaz..
António Mata, Algueirão-Mem Martins (Sintra)
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Imagem: Touro na arena, acrílico s/ tela de Paula Navarro

Delirium

A caixa dos pirolitos começa a fervilhar. A pressão dentro da panela começa a subir e já sai algum fumo pelos ouvidos. Felizmente os gases são inodoros e só a visão do campo á nossa frente fica nublada. Os vultos, que eu sei serem figuras reais, parecem espíritos errantes que se movem e gesticulam como personagens de Ionesco. Ali, do lado esquerdo, está um tipo todo verde a fazer gaifonas para os passantes e mesmo em frente está outra estranha figura, esquálida e amarelenta, segurando na mão esquerda uma placa que diz: Pare, escute e olhe!
Examinando melhor, vislumbramos um querubim no topo da fantasmagoria que para além da inseparável corneta que o caracteriza, assume a posição de quem vai defecar. Em baixo, uma procissão de sapos que se dirige para lado nenhum levanta os esbugalhados olhos para cima temendo o pior. No canto do lado esquerdo estão sentadas duas megeras vestidas de negro. Uma levanta ao alto um cartaz que diz: Quem te avisa teu amigo é! A outra, mais incisiva, informa: Hoje em S. Miguel, amanhã no Paquistão!
No centro, bem no centro da tela, um Zé-povinho faz o seu gesto característico.
Então vejamos:
Se neste mundo se morre ao ritmo de milhares de pessoas por minuto, libertando para a estratosfera idêntico número de espíritos que precisam de ser realojados porque razão os delegados de propaganda só aparecem quando há uma catástrofe que, ao fim e ao cabo, só produz uma ligeiríssima inflação no deve e haver da Vida… ou da Morte?
Seja em Nova Orleães, na Índia, no Afeganistão ou no Iraque a exploração da morte para fins propagandísticos é um triste e deplorável exemplo de oportunismo… que se pretende dourar com uma pitada de valores humanistas.
Ah, seus grandes malandros, sempre à espreita de um sinal de fraqueza que vos escancare a porta.
- Entrai, entrai! Bem-vindos sejais! Que trazeis hoje no bornal? Espíritos malignos, tendes? Queria oferecer um à minha vizinha que vai dar à luz amanhã. Era para lhe fazer a vida tão negra como a minha. Ah, só trazeis espíritos papa-açorda? Passai por cá mais tarde, talvez lhes arranje colocação.
Tudo bem! Pode haver inflação de desencarnados. Outra coisa não seria de esperar com a crise que vai no Benfica.
Será que encarnarão no Sporting? Ou no Porto?
Gira o disco! A banda dos Bombeiros Voluntários da Minha Terra ataca o “Mundo cani” de Bernal.
Não conheceis?
Também não faz mal.

António Mata


Quadro de Hieronymus Bosch – Paraíso Terreno