quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Minudências

Apesar de Eça de Queiroz ser, sem dúvida alguma, um dos mais biografados de todos os nossos escritores, a sua vida parece reservar ainda alguns segredos.
Embora a sua naturalidade e filiação sempre tenham gerado alguma polémica, tem, contudo, havido alguma contenção, talvez por respeito para com a família, que se costuma indignar quando se toca neste assunto.
Há meia dúzia de anos, José Hermano Saraiva tornou pública a sua interpretação que alterou radicalmente as genealogias conhecidas de Eça de Queiroz. Pelo facto de no registo do seu nascimento constar que é filho de José d’Almeida Teixeira de Queiroz e de mãe incógnita e, baseado na lei vigente em 1845 e ainda na consulta feita a ilustres magistrados, conclui que a omissão do nome da mãe só poderia significar que Eça de Queiroz era filho de uma senhora casada.
Para se abordar um tema deste tipo é necessário ter formação adequada e fazer muito trabalho de investigação. A um leitor apaixonado por Eça, como eu, apenas resta tomar conhecimento daquilo que se vai escrevendo sobre um dos maiores vultos da nossa literatura. Por vezes deparamos com informação que nos intriga e que dada a nossa insipiência, gostaríamos de partilhar com pessoas entendidas na matéria, para nosso completo esclarecimento.
Foi o que aconteceu.
De vez em quando, respondendo a um apelo interior, meto-me a caminho e faço uma expedição pelos alfarrabistas. Não procuro nenhuma edição em particular, nem sequer tenho um objectivo concreto. É um ritual que cumpro, olhando, apalpando e avaliando calhamaços, sem outra intenção que não seja o desfruto do momento, já que os preços são, normalmente proibitivos para a minha bolsa.
Numa dessas deambulações, encontrei-me certo dia, embasbacado, a olhar para os livros expostos numa daquelas barraquinhas verdes que existem sob as arcadas daPraça do Comércio. O proprietário, que conheço há muitos anos de outras andanças, disse-me:
- Podes mexer á vontade! E o preço é para amigos, como já sabes.
O meu irmão, que me acompanhava, já folheava este e mais aquele, ainda eu fazia uma leitura em diagonal da mercadoria patente.
“Ramalho Ortigão, Memórias do seu Tempo”, foi o título em que me fixei. Júlio de Sousa e Costa era o autor.
Não é possível – pensei.
Era uma edição da Livraria Romano Torres o preço de capa era de 15 escudos. Paguei 5 euros dos oito que estavam marcados na primeira folha.
O livro é meu!
Júlio de Sousa e Costa não publicou obra de vulto, que o consagrasse, não sendo portanto, figura de relevo no panorama literário nacional. Era contudo um homem muito culto, que mereceu o respeito das gentes da sua terra. Tomei dele lições de inglês num determinado período da minha juventude e pude confirmar algumas das “extravagâncias” que lhe assacavam e acabaram por fazer parte intrínseca do seu retrato psicológico.
O autor estrutura o livro do seguinte modo:
Deslocando-se a Lisboa com frequência por dever de ofício, visita regularmente Ramalho Ortigão que lhe fora apresentado por um amigo comum. De 1895 a 1915 mantém uma amizade constante, segundo as suas próprias palavras. Das conversas travadas durante esse período, ele nos dá testemunho neste livro.
Não me pronuncio sobre a veracidade do que ali nos é transmitido, mas é sem dúvida um óptimo documento para quem, como eu, se interessa pelas coisa e pessoas da nossa terra natal.
Dos diálogos travados com Ramalho, só quero referir aquele que se refere ao animismo.
Este assunto veio à baila porque a determinada altura o autor de “Holanda” lhe disse:
- Claro está, que você não deixou de visitar os seus amigos e grandes bruxos, entre os quais avultam o Fernando Lacerda, das polícias lisboetas e o Sousa Couto do Ministério da Justiça!
Júlio Costa confirmou e aproveitou para transmitir um recado que o Dr. Eça de Queiroz lhe enviara do Além, através da pena de Lacerda que como extraordinário médium que era, psicogravara a mensagem. Depois de lida, Ramalho, não querendo questionar a honorabilidade dos intervenientes, deixou, contudo, transparecer algum cepticismo.
- “Duvida, senhor Ramalho Ortigão?...”
- “Cheguei à idade em que já não se duvida de coisa alguma!... O que acaba de ler é extraordinário, e, confesso-o, só Eça de Queiroz seria capaz de o traçar.”
Do espiritual recado de Eça, apenas transcrevo esta sua experiência terrena:
- “Quando na Terra tive ocasião de assistir a experiências que interessaram muito o meu cuidado de observador. Em Paris, um dia, efectuou-se uma sessão em minha casa a que assistiram entre outros, o Navarro e o Faria; ali obtivemos notícias que pareceram autênticas de pessoas idas”.
Para provar esta querença queirosiana, Júlio Costa refere uma passagem do admirável livro póstumo “A cidade as serras” em que aparece o nome do Coronel Dorchas, que o meu conterrâne diz ser o Coronel Albert de Rochas, grande animador desta doutrina, com quem Eça se terá cruzado na capital francesa.
E a conversa termina com Ramalho Ortigão dizendo:
- “É certo que eu tenho uma ideia de ele me ter falado em Paris, de teosofia, esoterismo e metafísicas diversas, e muito convencido de que a morte não é o ponto final… Eça, tinha por vezes, uns saltos, manias, apreensões e ratices engraçadas, das quais, por fim se ria e comentava com imensa graça… a sua graça especial”.
Que valor merecem estas referências, feitas por um autor que só na sua terra é realmente reconhecido? Poderão acrescentar ou modificar alguma coisa do conhecimento que temos do nosso muito querido Eça?
A.M.

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