quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Dar de beber a quem tem sede

Depois que a recomendação “dar de comer a quem tem fome” foi para o brejo devido à preocupação dos bem alimentados em defender a sua farta mesa das benesses que o poder automaticamente lhes confere, entrou-se numa espiral, que com a força dum tornado empurra uns para cima e outros para baixo.

Conheci uma mulher que esperou que a filha chegasse do emprego para ir ao mentiroso empenhar os sapatos que trazia calçados para a família comer. Um velho colega da escola, possivelmente já falecido, chorou copiosamente, não por ter chumbado na 3ª classe, mas porque perdeu o direito a um ovo estrelado que a mãe lhe prometera se ficasse bem no exame. Sei de muitas famílias que viviam a crédito na esperança de saldarem as suas dívidas no fim do mês e acabavam por vender ao desbarato os parcos bens que possuíam.


- Três corpetes, um avental
Sete fronhas e um lençol
Três camisas do enxoval
Que a freguesa deu ao rol


Havia outros róis, meus caros jovens!
Também havia o rol onde nas mercearias se registava o fiado.
- Ponha na conta – diziam.
No fim do mês, se as coisas corriam mal, tinham que enfrentar o ar carrancudo do merceeiro para se desculpar:
- O meu homem está desempregado… Se pudesse pagar para o mês que vem…?


Hoje é tudo muito mais fino e sofisticado.
Existem umas entidades sem rosto que nos telefonam a desoras para nos oferecer crédito.
- Já tenho um de 500 euros, não preciso de mais.
- Mas as condições… o tempo…
- Porra, já disse que não quero mais crédito nenhum! Chiça!


Depois, mês a mês, a conta crescia, e o candidato a cacique, lá ficava com mais alguns acres na sacola.
Agora, que os anéis, os colares e porque não os próprios sapatos são vendidos ao desbarato na vã tentativa de prolongar a vida de um estado agonizante, que, como já li algures, procura “suster a insustentabilidade”, transfigura-se-me o semblante, fico com medo de sair à rua e assustar os passantes.
As águas?
Também vão vender as águas?
Mas eu sempre a paguei, com mil diabos! Pago à câmara não sei quanto por metro quadrado; quando olho para a factura fico petrificado. No mês passado acrescentaram à conta mais vinte e tal euros de saneamento.
Não estão a falar da água do Luso, pois não? Porque essa já eu pago no super e creio que já está privatizada. Será alguma empresa com capitais alemães?
Afinal que águas é que vão privatizar?
Será a da chuva?
Será a do mar salgado?
Já não tenho muitos anos de vida, mas começo a pensar que se calhar ainda vou assistir à privatização do ar a preços variáveis em função da sua pureza. Ou seja, o ar da Serra de Sintra custará o dobro do ar de Lisboa, por causa dos gases. Uns e outros.
Ser-nos-á montado um chip individual que contabilizará o consumo da energia que usamos para purificar o nosso rico sangue. Respirar devagarinho, não fazer inalações muito profundas, como por exemplo soltar suspiros muito prolongados que conduzem à subsequente inspiração de oxigénio para ocupar o espaço pulmonar entretanto vago, é aconselhável.
O que certamente já não vou ter oportunidade de assistir é ao dia em que a 10 de Julho será prestada homenagem póstuma a todos aqueles que morreram com falta de ar.


A Pátria reconhece, agradecida!


Água fria da ribeira
Água fria que o sol aqueceu…


A.M.




PS - Imagem recolhida em:
http://biosabermais.files.wordpress.com/2008/03/agua.jpg

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