terça-feira, 18 de novembro de 2008

O Leopardo

A sala de espera de um hospital é um local óptimo para deixar a imaginação tomar o freio nos dentes. Deixá-la ir, correr descontrolada, ziguezaguear entre obstáculos, saltar valados e riachos até que, exausta, esmoreça e estaque.

O senhor que está ao nosso lado esquerdo segura as análises com tal empenho que deve estar com medo que lhe fujam. A senhora ao lado não tira os olhos do monitor colocado na parede á sua esquerda, receando que passe o número da sua senha sem se dar conta.

Vai certamente sair daqui com um torcicolo.
Quatro cadeiras alinham-se na parede em frente. Numa ponta está sentado um velhote da minha idade lendo o Destak, ao seu lado uma jovem de cabelo azeviche e olhos verdes, folheia uma Nova Gente de 1914; a seguir, de perna traçada uma mãe de família que não cuidou da linha deixa entrever alguns quilos de celulite e ao lado cabeceia com sono uma velha senhora. Por enquanto ainda não se babou, mas de cada vez que, cabeceando, perde o equilíbrio, abre os olhos e mira em redor para ver se alguém está a ver. Nunca encontra ninguém a olhar para ela, pois no preciso momento em que acorda, a assistência está a olhar para o teto ou para as unhas, sustendo o riso.

Agora dou comigo a pensar que antigamente não havia ar condicionado e os doentes que esperavam a sua vez rapavam frio de rachar ou calor de derreter as pedras da calçada. Eu por acaso nunca disse que antigamente é que era bom porque não consigo deixar de estar ligado ao passado de uma maneira muito real e viva.
O espaço central entre o par de cadeiras da esquerda e o da direita é um pouco maior.
Caramba, o que ficava ali bem era um escarrador.

Ainda não tinha sido inventado o plástico e o aço inox, e as panelas e os tachos tal como os escarradores eram de ferro esmaltado. Foi a época do esmalte que conviveu paredes-meias com os fogões Hipólito, a farinha 33, o sabão amarelo e os candeeiros de torcida.
Normalmente em esmalte branco, havia-os de dois tipos – directamente colocados ao nível do chão ou empoleirados a meia altura numa armação de ferro pintado da mesma cor. A vantagem destes sobre aqueles é óbvia e não vale a pena dar mais explicações.

Por momentos regresso ao presente e olho para o papel que vou enrolando nos dedos de forma automática. É a minha senha de chamada. Tem precisamente o número 69.
Ainda não tinha dado muita atenção a esse facto, talvez devido à idade e á distância.

No segundo logo a seguir, estou numa plateia de cinema a ver o “O Leopardo”. Na minha opinião um dos melhores filmes de Visconti ao lado de “Morte em Veneza”.
Tem como fundo a Sicília numa época em que ao contrário das divisões que os nacionalismos hoje estão a produzir, Garibaldi lutava pela unificação da Itália.
Burt Lancaster representa o aristocrata reaccionário que tenta resistir aos ventos de mudança e Angélica (Cláudia Cardinali) é o elo que estabelece a ligação entre o passado e o futuro.

Mas porquê o Leopardo? Saltou inopinadamente do ramo dum cipó para a sala de espera dum hospital? Assim sem mais nem menos?
Foi por causa do número da minha senha, caramba!
O filme é de 1962 ou 1963, creio eu, e por essa altura Cláudia Cardinali foi ao banco levantar dinheiro. Naquele tempo as liras eram às carradas ou às pazadas e também ainda não havia os contadores automáticos de notas, pelo que era o caixa que as contava manualmente.
De cabeça baixa sobre o balcão ia contando 1, 2, 3, 4 , com um olho no dinheiro e o outro no decote de Cláudia (como de costume sempre muito liberais), 30, 31, 32, 33 e foi contando… 66, 67, 68, quem me dera, 70, 71…
- O Sr. Não é o 69? – Alertou-me a senhora do lado – estão a chamá-lo.

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