Há muitos anos tive um canário preso numa gaiola. Trinava
tão bem e tantas vezes durante o dia que me convenci que ele não tinha a noção
de que estava preso, a não ser que tivesse a intenção de me agradecer a alpista
que nunca lhe faltava no comedouro. Havia, pois, uma relação de mercado entre
nós. Troca de géneros, é certo, que até o sal já foi moeda - eu alimentava-o e
ele fornecia-me o seu alegre esvoaçar e o seu estridente trinar. Tinha-o
recebido como prenda num dia de anos, devidamente engaiolado por um familiar
que o comprara numa dessas lojas onde livremente se vendem trabalhadores de
trinados, de chilreios e arrulhos. Também se vendem os que palram, mas são
muito mais caros.
Um dia, em que o sol brilhava, céu sem nuvens e uma
ligeira brisa ondulando a copa das árvores, resolvi fazer uma limpeza à gaiola,
como aliás fazia com alguma regularidade para evitar que ele adoecesse com
tricomonas. Saí com a gaiola pendurada no dedo para o quintal, onde, junto ao
tanque da roupa, costumava proceder à limpeza da gaiola. Por qualquer razão,
que ainda hoje não sei explicar, a gaiola escapou-se-me das mãos e caiu ao
chão. A portinhola abriu-se e o meu rico canário saiu esvoaçando rente ao chão.
A alguns metros encontrava-se o gato do vizinho que - tenho a certeza – já
estava de boca aberta e zás… chamou-lhe um figo.
-------------------------------------------------------------------------
Ontem, o cão do meu vizinho saltou o muro e fugiu da
sua prisão, onde tinha boa comida e era acarinhado. Claro que não estava preso
com correntes, andava solto pelo quintal correndo atrás da passarada e abanando
o rabo de contente. Quando, pressentindo que havia um mundo a explorar para
além daqueles muros, optou pela liberdade e fugiu.
Dois dias depois foi encontrado pelo dono no canil onde
se preparavam para o abater. Tinha sido atropelado por um carro, tinha a coluna
partida e estava paralisado dos quartos traseiros. O dono ainda o carregou e
levou ao veterinário onde foi radiografado e se confirmou a gravidade do seu
estado. A eutanásia foi inevitável e depois… só ficaram as cinzas.
---------------------------------------------------------------------------
Quando o Malaquias foi despedido, porque a fábrica multinacional
onde trabalhava perdeu uma fatia importante do mercado de panelas de pressão, o
mundo desmoronou-se à sua volta. Poucos meses antes tinha sido aprovada uma lei
que acabava com os subsídios de desemprego e não lhe dando o magro salário para
ter feito algumas poupanças, encontrava-se numa situação de verdadeiro
desespero.
Imediatamente começou à procura de trabalho, pois com mulher e filhos para
sustentar, mais a amortização da casa, da água, da luz e do gás, tinha que
conseguir um emprego em qualquer lado, o mai9s depressa possível, nem que fosse
abaixo do salário mínimo. Entretanto começou a vender alguns pertences: primeiro
foi a coleção de selos que tinha herdado pai, depois uma escrivaninha antiga
que a mulher tinha trazido no dote, mais tarde vendeu a televisão, o baú da
roupa, a mesa da cozinha… vendeu tudo aquilo que lhe quiseram comprar e quando deixou
de poder assumir os compromissos, cortaram-lhe a água, depois a luz e o gás e
por fim teve que entregar a casa ao banco.
A sua sorte foi ter
encontrado, dois dias depois, um empresário agrícola que deu alojamento e
alimentação aos quatro em troca de 12 horas de trabalho na quinta onde possuía enormes
estufas de vários produtos hortícolas. Aceitou de imediato, pelo menos não
iriam morrer de fome. É certo que ficou dececionado com o alojamento. Era um
enorme barracão que tinha de compartilhar com mais duas famílias que já ali dormiam.
O almoço não era mau: uma sopa de couves cozidas com feijão encarnado, um
guisado de fressura de porco umas vezes com massa, outras com arroz e meia
carcaça de pão de centeio. Meia gaiola era o vinho de que dispunha para as duas
refeições. A mulher e os miúdos dessedentavam-se com água do poço, ali mesmo ao
lado do alpendre/refeitório.
-----------------------------------------------------------------------------
O canário estava preso numa
gaiola e quando adquiriu (embora acidentalmente) a liberdade enfiou-se na boca
do gato.
O cão vivia entre muros de
que um dia conseguiu libertar-se e foi atropelado mortalmente.
O Malaquias tem muito mais
sorte. Alguém por ele, como o dono do canário e o dono do papagaio zelam pelo
seu bem-estar. Por enquanto o Malaquias pode ir-se embora, pode fugir… mas para
onde? Talvez não falte muito tempo para que o Malaquias seja perseguido pelos
beleguins do patrão se resolver fugir com a família.
-----------------------------------------------------------------------------
O Zé do Canto é viúvo.
Vive sozinho. Subsiste com a venda de tomates que planta no seu pequeno quintal.
Todos os dia aquela alminha passa a manhã e parte da tarde no mercado da vila…
preso pelos tomates!