Confesso que não dei muita atenção às minúcias do relato.
Também, para o fim em vista, isso não é muito importante.
Os contornos precisos não são essenciais para a figura que pretendo desenhar.
Um amigo que vive numa pequena terra do oeste português, ante a vaga de indignação que se gerou quando se tomou conhecimento que a Junta de Freguesia pretendia transferir a capela mortuária para outro local, aceitou, a pedido de alguns conterrâneos, elaborar um protesto para enviar às entidades competentes.
Fez um rascunho em que procurou focar todos os inconvenientes da medida enunciada, argumentou com as razões que lhe pareceram plausíveis e sugeriu alternativas.
Fê-lo circular pela vizinhança, pediu a opinião dos amigos no café da aldeia e creio que até o padeiro e o leiteiro foram consultados.
Estava óptimo! Parabéns! Prá frente com isso – incitaram.
Passou tudo a limpo com muito cuidado.
Ele sabe que a apresentação é um factor importante nestas coisas.
- Falta um título, pensou.
Pensou e achou: “O povo é quem mais ordena”.
Encerrado o protesto nos respectivos sobrescritos lá seguiram para a Junta de Freguesia, para a Câmara Municipal e demais entidades que costumam ser oficiadas nestes casos.
No café foi afixado um exemplar para que toda a gente tomasse conhecimento da diligência.
Mas o título, meu Deus?
Tocaram os sinos a rebate?
Parece que não. Mas uma emoção geral espalhou-se no povoado.
O conteúdo perdeu todo o sentido e só o título ficou a ofuscar as mentes, fazendo esquecer os mortos e a capela mortuária.
Quando o assunto foi discutido para se perceber a razão do alarido, ficou claro que o problema estava na palavra “ordena”.
Parece que a maioria concordou que tudo estaria bem se o título fosse: “ O povo é quem mais manda”.
O Zeca Afonso, entretanto, liberto das sua obrigações de cidadania neste ingrato país, contorce-se de riso lá onde está e não pode evitar uma ponta de orgulho por, passados mais de trinta anos, o seu verso ainda estar tão vivo entre os vivos.
Mesmo que seja para odiar!