sábado, 28 de fevereiro de 2015

A origem das nomenclaturas


Vespúcio passou a noite sem conseguir pregar olho. Ao longo dos anos tinha conseguido viver sem grandes sobressaltos, gerindo o seu rendimento mensal de forma a não se endividar. Passou por períodos em que foi necessário fazer cortes na despesa e outros em que conseguiu reservar algumas economias que lhe permitissem cumprir o seu principal objetivo – possuir casa própria. Agora, quando julgava que, depois de tantos anos de trabalho, poderia usufruir de uma reforma que lhe permitisse satisfazer as necessidades básicas e reservar uma pequena parte para umas férias na Atouguia da Baleia ou até mesmo em Arrifana, eis que uma crise sistémica, originada por previsíveis mas não anunciados cataclismos económicos e financeiros, varreu, determinada e irresistivelmente, o mundo à sua volta.
Agora, a situação agravou-se tanto que já o obrigou a cortar a quota para os bombeiros e para o guarda noturno, reduzir a esmola para os pedintes ou mesmo usando mais vezes o “tenha paciência”, cortar o jornal diário, andar com os sapatos cambados, as camisas desfiadas nos punhos, o corte de cabelo adiado, os óculos recomendados em lista de espera por melhores dias, a impressora a entupir-se por falta de tinta, papel higiénico de uma só folha etc., etc.
Com a idade os problemas de saúde agravam-se e a conta para consultas, análises e farmácia agravam a situação. Hermengarda, sua mulher, quando lhe pedem para indicar os males de que padece, costuma, perguntar, por sugestão do marido que funciona sempre com a produtividade no horizonte:
- Não será mais fácil fazer a lista dos males de que não padeço?  
Há dias deu-lhe uma dor no joelho. Na primeira consulta dizem que devia ser ciática. Então toma lá Relmus! Segue-se uma coisa que se chama electroapunctura, versão japonesa do método chinês. Melhoras? Népia! Vespúcio acha que isto ainda vai dar numa prótese da rótula ou coisa parecida. Entretanto a válvula de porco vai cumprindo o seu dever, abrindo e fechando a um ritmo muito irregular, bombeando a linfa até á ponta dos dedos mindinhos dos pés.
Ainda o sol espreita no horizonte, Vespúcio resolve levantar-se. Enquanto toma o seu banho diário pensou que talvez não fosse má ideia tomar banho dia sim, dia não… sempre poupava no gás, na água e até na taxa de saneamento que ardilosamente os municípios resolveram indexar aos metros cúbicos. Quando se olha ao espelho salta-lhe o Camões:

“O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos”

 - Mas que mau aspeto – disse Vespúcio para a figura à sua frente.
Deu um toque no cabelo, vestiu o albornoz e toca de marchar para a bica da manhã que ainda é uma das poucas mordomias de que frui. Bom dia para o Manel, bom dia para a D. Isaltina, que é viúva e anda à cata de aconchego, bom dia também para o Jorge que pressuroso lhe serve o cafezinho em chávena escaldada e de boca larga para fazer o café girar tipo poço da morte, limpando o açúcar que possa ter ficado no fundo.

- Ó vizinho já leu a crónica do palerma do Miguel? - pergunta-lhe o Manel.
- Qual? Aquele que anda a ver se também arranja um lugarzinho de subsecretário?
- Sim, esse mesmo. Já desferrou a dentuça do Sócrates. Agora filou o Aléxis Tsípras e não o vai largar tão cedo.
Passou o jornal ao Vespúcio que, enquanto sorvia o café, foi lendo o Miguel.
No fim ficou a pensar que nunca tinha ouvido criticar um criminoso qualquer referindo o modo como se vestia ou penteava. Pois este Miguel para arrasar o Aléxis chega ao ponto de realçar não só a falta da gravata, que considera ser um artifício, como o facto de ter dado ao filho o nome de Ernesto.
O Manel continuava a debitar matéria para os presentes, mas Vespúcio já estava noutra onda.
Será que o pai do seu antigo camarada Lenine lhe deu o nome por causa do Vladimir?
Ou o seu amigo de infância apelidou o seu rebento de Vladimiro por causa do Lenine?

O primeiro nome de Vespúcio é António; será que o seu pai simpatizava com o “botas”?
Ou o pai do Óscar com o Wild? (muito pouco provável)
Ou o padrinho do Alfredo com o “bigodinho”?
E o Raúl é por causa do Castro?
E o Miguel? Será uma homenagem ao Cervantes ou ao Vasconcelos?
Subitamente, dirigiu-se ao Manel e interrogou:
- O seu pai era admirador do Noriega?

Coitado do Vespúcio… foi caminhando para casa com uma obsessão. O seu padrinho de batismo seria admirador de qual Américo?

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