quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A LIBERDADE


Há muitos anos tive um canário preso numa gaiola. Trinava tão bem e tantas vezes durante o dia que me convenci que ele não tinha a noção de que estava preso, a não ser que tivesse a intenção de me agradecer a alpista que nunca lhe faltava no comedouro. Havia, pois, uma relação de mercado entre nós. Troca de géneros, é certo, que até o sal já foi moeda - eu alimentava-o e ele fornecia-me o seu alegre esvoaçar e o seu estridente trinar. Tinha-o recebido como prenda num dia de anos, devidamente engaiolado por um familiar que o comprara numa dessas lojas onde livremente se vendem trabalhadores de trinados, de chilreios e arrulhos. Também se vendem os que palram, mas são muito mais caros.
Um dia, em que o sol brilhava, céu sem nuvens e uma ligeira brisa ondulando a copa das árvores, resolvi fazer uma limpeza à gaiola, como aliás fazia com alguma regularidade para evitar que ele adoecesse com tricomonas. Saí com a gaiola pendurada no dedo para o quintal, onde, junto ao tanque da roupa, costumava proceder à limpeza da gaiola. Por qualquer razão, que ainda hoje não sei explicar, a gaiola escapou-se-me das mãos e caiu ao chão. A portinhola abriu-se e o meu rico canário saiu esvoaçando rente ao chão. A alguns metros encontrava-se o gato do vizinho que - tenho a certeza – já estava de boca aberta e zás… chamou-lhe um figo.
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Ontem, o cão do meu vizinho saltou o muro e fugiu da sua prisão, onde tinha boa comida e era acarinhado. Claro que não estava preso com correntes, andava solto pelo quintal correndo atrás da passarada e abanando o rabo de contente. Quando, pressentindo que havia um mundo a explorar para além daqueles muros, optou pela liberdade e fugiu.
Dois dias depois foi encontrado pelo dono no canil onde se preparavam para o abater. Tinha sido atropelado por um carro, tinha a coluna partida e estava paralisado dos quartos traseiros. O dono ainda o carregou e levou ao veterinário onde foi radiografado e se confirmou a gravidade do seu estado. A eutanásia foi inevitável e depois… só ficaram as cinzas.
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Quando o Malaquias foi despedido, porque a fábrica multinacional onde trabalhava perdeu uma fatia importante do mercado de panelas de pressão, o mundo desmoronou-se à sua volta. Poucos meses antes tinha sido aprovada uma lei que acabava com os subsídios de desemprego e não lhe dando o magro salário para ter feito algumas poupanças, encontrava-se numa situação de verdadeiro desespero.
Imediatamente começou à procura de trabalho, pois com mulher e filhos para sustentar, mais a amortização da casa, da água, da luz e do gás, tinha que conseguir um emprego em qualquer lado, o mai9s depressa possível, nem que fosse abaixo do salário mínimo. Entretanto começou a vender alguns pertences: primeiro foi a coleção de selos que tinha herdado pai, depois uma escrivaninha antiga que a mulher tinha trazido no dote, mais tarde vendeu a televisão, o baú da roupa, a mesa da cozinha… vendeu tudo aquilo que lhe quiseram comprar e quando deixou de poder assumir os compromissos, cortaram-lhe a água, depois a luz e o gás e por fim teve que entregar a casa ao banco.

A sua sorte foi ter encontrado, dois dias depois, um empresário agrícola que deu alojamento e alimentação aos quatro em troca de 12 horas de trabalho na quinta onde possuía enormes estufas de vários produtos hortícolas. Aceitou de imediato, pelo menos não iriam morrer de fome. É certo que ficou dececionado com o alojamento. Era um enorme barracão que tinha de compartilhar com mais duas famílias que já ali dormiam. O almoço não era mau: uma sopa de couves cozidas com feijão encarnado, um guisado de fressura de porco umas vezes com massa, outras com arroz e meia carcaça de pão de centeio. Meia gaiola era o vinho de que dispunha para as duas refeições. A mulher e os miúdos dessedentavam-se com água do poço, ali mesmo ao lado do alpendre/refeitório.
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O canário estava preso numa gaiola e quando adquiriu (embora acidentalmente) a liberdade enfiou-se na boca do gato.
O cão vivia entre muros de que um dia conseguiu libertar-se e foi atropelado mortalmente.
O Malaquias tem muito mais sorte. Alguém por ele, como o dono do canário e o dono do papagaio zelam pelo seu bem-estar. Por enquanto o Malaquias pode ir-se embora, pode fugir… mas para onde? Talvez não falte muito tempo para que o Malaquias seja perseguido pelos beleguins do patrão se resolver fugir com a família.
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O Zé do Canto é viúvo. Vive sozinho. Subsiste com a venda de tomates que planta no seu pequeno quintal.
Todos os dia aquela alminha passa a manhã e parte da tarde no mercado da vila… preso pelos tomates!

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